sexta-feira, 31 de julho de 2009

Viva a crítica liberal

Demétrio Magnoli
A revogação da Lei dos Cereais (1846), dos Atos de Navegação (1849), dos Atos do Açúcar (1852) e do sistema de proteção fiscal, no orçamento de Gladstone (1860), assinalaram a vitória do programa liberal na Grã-Bretanha. Durante o meio século seguinte, até a guerra mundial, apagou-se lentamente a memória dos “famélicos anos quarenta”, o tempo da grande fome irlandesa e dos altos preços do pão no conjunto das Ilhas Britânicas.
O fim do protecionismo assegurou uma elevação continuada dos níveis de consumo da população e consolidou a liderança britânica no comércio e nas finanças internacionais. Liberdade econômica converteu-se, na imaginação das pessoas, em um equivalente de libertação do desemprego, das incertezas e da carestia. Mais além da esfera material, tornou-se um equivalente de liberdades constitucionais, no reino e nas colônias, e de um governo limitado por instituições políticas responsáveis. O poder magnético do pensamento liberal não se dissociará, jamais, da curta era de ouro encerrada pelas catástrofes que pontuaram quase toda a primeira metade do século XX.
Contudo, e ao contrário do que diz uma lenda da qual emanou o termo “neoliberalismo”, os liberais nunca mais, em nenhum lugar relevante, conseguiram empalmar o poder e aplicar seu programa original. O Estado liberal, plenamente delineado na Grã-Bretanha daqueles tempos gloriosos, não ultrapassou o estágio embrionário na Europa continental – e não teve tempo para deitar raízes profundas nos EUA. Sob o impacto das lutas sociais, da Grande Depressão e das guerras devastadoras, emergiu a democracia de massas do segundo pós-guerra, que tem um componente antiliberal irrevogável.
Nos anos 20, os gastos públicos sociais nos EUA não alcançavam 5% do PIB. Depois, com o New Deal e as décadas de expansão econômica do pós-guerra, criou-se o Welfare State e os gastos sociais cresceram até perto da linha de 20% do PIB. Ao contrário das percepções populares associadas ao mito do neoliberalismo, o Welfare State sobreviveu aos golpes hayekianos de Ronald Reagan, que apenas estabilizaram temporariamente as despesas públicas com pensões, educação, saúde e welfare. Hoje, tais despesas ultrapassam os 20% do PIB – e isso nos EUA, pois na Europa atingem patamares superiores a um terço do PIB.
O liberalismo original existiu, brevemente, no ambiente formado pela democracia restrita. A extensão do direito de voto a todos os adultos, homens e mulheres, proprietários e despossuídos, constituiu o arcabouço político para o Welfare State, que é a componente antiliberal da democracia de massas. Não há volta nessa trajetória: é impossível recolocar o gênio dentro da garrafa. A primavera liberal é, agora, um capítulo nos livros de história e os liberais estão condenados a figurarem como facção minoritária na cena política contemporânea. Mas essa minoria desempenha uma função crucial – e insubstituível – de resistência contra a perene ameaça às liberdades que pode ser expressa pela metáfora do Leviatã.
Liberdade e igualdade formam os dois princípios da modernidade. Eles se completam num jogo de tensão e oposição. O partido da liberdade é a corrente liberal, que enxerga no Estado a fonte da opressão. O partido da igualdade é a corrente social-democrata, que enxerga no mercado a fonte da injustiça. A queda do Muro de Berlim representou o triunfo histórico de um sistema que abrange as duas correntes, os dois partidos e os dois princípios. O totalitarismo comunista, uma perversão sangrenta do princípio da igualdade, não foi derrotado pelos liberais sozinhos, mas por um sistema complexo de instituições políticas e econômicas que oscila sem cessar entre os cantos sedutores do mercado que enriquece e do Estado que protege. Os berlinenses que atravessaram a barreira no 9 de novembro de 1989, encerrando com aquele gesto a aventura do totalitarismo, queriam os dois: oportunidades e segurança.
No mundo de hoje, um liberalismo tout court só poderia ser aplicado pelo cancelamento dos direitos políticos da maioria da população. Só por essa via extrema seria possível reverter a trajetória que produziu o Welfare State, com sua vasta rede de proteções sociais. Um experimento desse gênero foi tentado no Iraque sob ocupação americana, mas não é nem sequer uma hipótese plausível nas democracias ocidentais ou nas economias emergentes.
Simetricamente, o programa tradicional da social-democracia, com suas abrangentes estatizações, não tem chance de conquistar um eleitorado que aprendeu a apreciar as vantagens proporcionadas pela dinâmica do mercado. A derradeira tentativa nessa direção, representada pelos turbulentos anos inaugurais do governo Miterrand na França, fracassou estrepitosamente. A ascensão simultânea de Thatcher, na Grã-Bretanha, e Reagan, nos EUA, foi o dobre de finados dos social-democratas estatistas. Tony Blair e Bill Clinton aprenderam a lição – e só por isso chegaram ao poder. A crise atual da centro-esquerda do Velho Mundo, tão nítida nas recentes eleições para o Parlamento Europeu, continua a refletir os impactos ideológicos da “revolução hayekiana” da década de 80.
O “socialismo real” deixou a cena, para sempre. Os partidos que o defendiam não apenas baixaram suas bandeiras como mudaram seus nomes, a fim de passar uma borracha sobre o seu próprio passado. Não há triunfo maior que esse: a conversão do adversário. Mas, duas décadas depois, como prova de que a história não tem fim, emerge uma nova alternativa à economia de mercado. O nome dela é capitalismo de estado. China, Rússia e, aqui perto, Venezuela funcionam como modelos da alternativa, que levanta a cabeça um pouco por toda parte, sob o estímulo adicional oferecido pelo colapso financeiro iniciado com a queda do Lehman Brothers.
Referindo-se, no calor dos acontecimentos, às revoluções democráticas de 1989, Timothy Garton Ash escreveu: “Karl Marx jogou com a ambiguidade da expressão alemã burgeliche Gesellschaft, que tanto podia ser traduzida como sociedade civil quanto como sociedade burguesa. Marx (…) nivelou deliberadamente as duas ‘cidades’ da modernidade, os frutos da Revolução Industrial e Francesa, o burguês e o cidadão. (…) o que a maior parte dos movimentos de oposição por toda a Europa central e grande parte do povo que os apóia está realmente dizendo é: Sim, Marx tem razão, as duas coisas estão intimamente ligadas – e nós queremos as duas! Direitos civis e direitos de propriedade, liberdade econômica e liberdade política (…) cada um desses termos apóia o outro.” O capitalismo de estado, como antes dele o “socialismo real”, é a negação da vontade política que fez 1989.
Os liberais não empalmarão o poder, ao menos sozinhos, e não restaurarão o mundo de Gladstone. Mas a crítica liberal dirigida contra o Leviatã é mais atual e necessária do que nunca.
http://www.imil.org.br/artigos/viva-a-critica-liberal/

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