terça-feira, 21 de dezembro de 2010

A Velha monarquia

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A anarquia militar, a abolição radical e o centralismo derrubam o Império de supetão
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O Brasil acordou monarquista na sexta-feira passada e foi dormir republicano. Jamais houve na História do país uma ruptura política tão inesperada. Na véspera, ninguém poderia prever que o reinado viria abaixo. Ao cair da tarde de quinta-feira, D. Pedro lI, 63 anos, fugindo do calor carioca, estava posto em sossego no palácio de Petrópolis, onde escreveu seu habitual soneto diário. No mesmo momento, o marechal Manoel Deodoro da Fonseca, 62 anos, encontrava-se em Andaraí, na casa de seu irmão, o oficial-médico João Severiano, tentando recuperar-se de um de seus habituais ataques de falta de ar. Menos de 48 horas depois, os detalhes eram semelhantes, mas as instituições estavam de pernas para o ar. D. Pedro lI, detido no palácio imperial do Rio de Janeiro, escrevia não um poema, mas, com a ajuda do barão de Loreto, a carta em que acatava a ordem de exilar-se: "Cedendo ao império das circunstâncias, resolvo partir com toda a minha família para a Europa amanhã". Na mesma hora, Deodoro ia para a cama, tão fortes eram os seus achaques. Mas com falta de ar e de cama era o chefe do governo provisório, o homem mais poderoso do pais.

Por mais que alguns republicanos agora queiram provar que a monarquia caía de podre, que a República era um anseio popular e que o movimento pela sua proclamação estava organizado até os íntimos detalhes, os fatos foram bem diferentes. O imperador e a princesa Isabel eram respeitados e admirados pela gente humilde, que no ano passado deixou de ser escrava. O Partido Republicano conseguiu eleger apenas dois deputados nas eleições de agosto, e, nas ruas, as simpatias que conseguia angariar eram episódicas e pouco eficazes. Quanto à organização das forças que derrubaram de supetão a monarquia na sexta-feira passada, elas lembravam mais uma geringonça andando aos solavancos que um trem bem azeitado. O dia 15 foi repleto de lances de confusão, de líderes que deram shows de hesitação (a começar por Deodoro), de liderados que acreditaram em boatos e saíram de quartéis pensando que estavam apenas derrubando o ministério. É quase um milagre que a República tenha sido proclamada na sexta-feira passada.

E, no entanto, o Brasil não só acordou imperial e dormiu republicano como, pelo menos até agora, não há indícios em qualquer canto do país de movimentos significativos de restauração monárquica. Caiu o Império praticamente sem sangue ou apenas com o sangue do Ministro da Marinha, José da Costa Azevedo, o barão de Ladário, 63 anos, ferido com dois tiros, um deles na região glútea. Caiu porque, ao longo dos últimos anos, a monarquia se embaralhou ao jogar com três problemas que de chofre lhe desabaram sobre a cabeça na sexta-feira, fazendo com que a coroa rolasse pelo chão. Os problemas que enredaram o Império foram a Abolição da Escravatura, o centralismo econômico-administrativo e a indisciplina militar.

A Abolição da Escravatura, tal como foi feita em 13 de maio do ano passado, representou uma aceleração radical na política de distensão lenta, gradual e segura do Império. Até então, os passos para acabar com o "elemento servil" - como dizia o imperador, recusando-se a usar a palavra feia mas correta: escravidão - se mediam em décadas. Em meados dos anos 50 terminou o tráfico de escravos. Em 1871, foi promulgada a Lei do ventre Livre, libertando os escravos nascidos desde então, e só catorze anos depois era assinada a Lei dos Sexagenários. Essas duas leis tinham embutidos mecanismos de indenização aos proprietários de escravos. Com a Lei Áurea, a princesa Isabel radicalizou. Ela expropriou os donos de escravos, que se viram privados de suas propriedades sem receber nada em troca. Essa violência contra escravocratas não ocorreu em país nenhum do mundo. Ou melhor, a libertação de escravos sem indenização só aconteceu nos Estados Unidos, mas numa situação particular: o Estados do norte decretaram a abolição em 1863 para atacar os escravocratas do sul do país, no quadro da guerra civil iniciada dois anos antes.

O Império não deu a indenização aos senhores de escravos por motivos econômicos. "O Brasil não é bastante rico para apagar o seu crime", explicou o abolicionista e monarquista Joaquim Nabuco, 40 anos. Ou seja, o Império não tinha dinheiro em caixa para pagar as indenizações aos mais de 200.000 donos dos 700.000 escravos libertados no ano passado. Com isso, a monarquia perdeu sua base de apoio mais sólida, a dos fazendeiros, que se sentiram roubados. Com uma clarividência notável, o falecido João Maurício Wanderley, barão de Cotegipe, presidente do Conselho de Estado até dois meses antes da abolição, afirmou depois da assinatura da Lei Áurea que a princesa Isabel havia libertado uma raça, mas perdido o trono.

O centralismo do Império deu bons resultados enquanto a Província do Rio de Janeiro foi o pólo mais dinâmico da economia nacional. Na medida em que a cafeicultura perdeu força no Rio, principalmente devido à exaustão dos solos, e começa a florescer no centro-oeste do país, inicia-se a grita federalista. Em alguns casos, o federalismo atinge o extremo do separatismo, como nas posições defendidas pelo advogado Alberto Sales, 32 anos, um dos donos de A Província de São Paulo, que no ano passado publicou A Pátria Paulista. No livro, o irmão de Campos Sales, o novo ministro da Justiça, informa que a província paulista tem uma renda anual de 25.000 contos de réis, e mais de 20.000 contos de réis vão para o governo central. "Salta aos olhos que o separatismo só poderá ser extremamente vantajoso para os paulistas", diz Alberto Sales. Afora o aspecto econômico da demanda federalista, havia o político. Martim Francisco, 36 anos, republicano e separatista paulista, atribuía a "infelicidade" de São Paulo à pequena representação da Província na Câmara. Isto porque cada deputado paulista representava 1.500 eleitores, enquanto um parlamentar do norte falava por 800 eleitores. Como o Império remanchou em atender aos interesses provinciais, a federação transformou-se numa reivindicação por excelência.

Se a abolição sem indenização e a federação eram dificuldades latentes mas um tanto difusas, a indisciplina militar era um problema indisfarçável, quase cotidiano. O problema tem suas raízes no final da Guerra do Paraguai, em 1870. A luta dos soldados estendeu-se por mais de cinco anos, foi árdua e cheia de revezes. A guerra fez com que surgisse, através de promoções rápidas e sucessivas, uma nova geração de altos oficiais. Essa nova geração ocupou lugares que foram antes de generais como Luis Alves de Lima e Silva, o duque de Caxias, e Manuel Luís Osório, o marquês de Erval, ambos falecidos há mais de nove anos. "Só tive um protetor: Solano López. Devo a ele, que provocou a Guerra do Paraguai, a minha carreira", diz o próprio Deodoro da Fonseca, explicando como chegou a marechal.

A guerra, se trouxe benefícios à oficialidade, foi também traumática e fez com que se estreitassem os laços de camaradagem e solidariedade entre os componentes da tropa. Fez, em suma, que o Exército se tornasse mais corporativista, achando que, por ter ganhado a guerra, a nação lhe devia algo. Lentamente, a princípio, e nos últimos tempos com uma sofreguidão alucinada, oficiais começaram a protestar a respeito de tudo, a se imiscuir em assuntos que não lhes diziam respeito, a descumprir ordens do Ministério da Guerra e do governo. Por outro lado, nas escolas militares, os cadetes eram formados num currículo bacharelesco, aprendendo positivismo, neologismo e teorias política. Logo o Exército se politizou, com oficiais como Deodoro enviando cartas à princesa Isabel, antes da Lei Áurea, dizendo que o Exército não iria caçar escravos fugidos.

A essa anarquia militar cada vez mais evidente o Império reagiu de modo oscilante, ora punindo, ora fazendo vista grossa à insubordinação - mas fundamentalmente não percebendo o tamanho da baderna que fermentava nos quartéis e escolas militares. Embebidos no mais chão dos corporativismos, açulados por federalistas, proprietários de escravos que queriam indenização e, é claro, por republicanos, os militares deram o golpe fatal na monarquia na sexta passada. Tiveram como adversário um imperador doente e cansado, uma monarquia com problema de sucessão no trono e um ministério dividido, cego para as dificuldades prementes. O Brasil entra numa nova era, a da República, um regime que permite a ampliação da cidadania, a participação popular, a democracia. O governo provisório tem muitos ministros de talento, mas os problemas imediatos que eles terão de resolver são graves, são os mesmos que embaralharam o Império: o da indenização peja abolição, o da autonomia das províncias e o da anarquia militar. 

 

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