sábado, 2 de fevereiro de 2013

Biografia de Mário de Andrade

Trecho inédito da biografia de Mário de Andrade, "Uma Vida Moderna" (título provisório), do capítulo "Inverno Sangrento"

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"No início de 1932, Macunaíma ainda trazia para Mário mais aborrecimentos que consagração, em decorrência das incompreensões e acusações de plágio. Contudo, outros acontecimentos, de caráter político, começaram a se sobrepor em suas preocupações, desde o monumental comício realizado no dia 25 de janeiro na Praça da Sé.
Debaixo de incessante chuva, a comemoração do 378º aniversário de São Paulo se transformara em um protesto maciço contra o governo central. Mário avaliou que a "alma paulista" estava vivendo um de seus momentos mais trágicos, pois ainda não estava claro o que os paulistas queriam com aquela escalada de conflitos que remontavam aos primeiros meses após a Revolução de 1930.
Ele repudiava o intervencionismo federal e as injustiças cometidas por um governo que se intitulava Provisório havia quase dois anos, com o Legislativo fechado e a Constituição abolida.
Mas a política não o atraía, sequer intelectualmente. Era como uma visita desagradável para a qual ele raramente abria a porta. Para alguém sensível como ele, era difícil suportar o jogo político, com as tramas e tramoias, manhas e artimanhas, dissimulações e subterfúgios. Como a maioria dos artistas e escritores dedicados ao seu ofício, ele estava mais interessado nas paixões universais, com suas contradições, erros e dúvidas. As sucessivas crises no país desde 1922 só o comoviam como espetáculo humano.
Embora continuasse filiado ao Partido Democrático, não tinha o entusiasmo de seu irmão Carlos, extrovertido e eloqüente, já se candidatara a vereador e era um dos mais atuantes membros do mesmo partido. Os dois até discutiam muito de vez em quando, porque Carlos considerava mais importante a revolução política do que a revolução estética.
Além disso, nos primeiros meses de 1932 Mário ficou doente, e depois de restabelecido voltou-se para os inúmeros trabalhos que ocupavam seu cotidiano: escrever contos e ensaios literários para a Revista Nova, um e outro poema nada político, dar as aulas no Conservatório, preparar a segunda edição do Compêndio de história da música e uma coletânea de artigos jornalísticos sobre música folclórica e erudita brasileira para um novo livro. Como se não bastasse, seu coração convalescia de um frustrado caso de amor - o casamento era uma cogitação, só faltava encontrar uma mulher ideal disponível.
Nos momentos de divagação, ele sonhava voltar ao Nordeste, mas para morar, à beira de alguma praia, de preferência em Natal. Outro plano era fazer mais uma viagem às cidades históricas de Minas Gerais, rever as obras do Aleijadinho, abraçar os amigos em Belo Horizonte, como escreveu a um deles, o poeta Carlos Drummond de Andrade.
Mas depois do comício na Praça da Sé, ficou impossível a qualquer paulistano que lesse jornal permanecer indiferente ao enredo político. Em meados de fevereiro o Partido Democrático e o Partido Republicano Paulista se aliaram formando uma Frente Única para reivindicar com mais força a autonomia política do estado de São Paulo e a convocação urgente de uma Assembleia Constituinte, que o governo prometera para o ano seguinte.
Mais por curiosidade de escritor, ele não deixava de ir às manifestações populares. Como a realizada na noite de 23 de maio, segunda-feira. A multidão se concentrou na Praça do Patriarca e após alguns discursos seguiu para o Palácio dos Campos Elíseos, sede do governo interventor, e percorreu outras ruas e praças do Centro. Na Praça João Pessoa (atual Pátio do Colégio), Mário assistiu com tristeza e raiva alguns homens mais exaltados arrancarem a placa de bronze com o nome do político paraibano assassinado menos de dois anos antes.
A ação foi saudada com vários tiros disparados para o alto. Mário e várias outros correram assustados. Ele foi para casa com o pensamento dividido, considerando que "todas as multidões são heróicas e covardes, civilizadas e selvagens", como escreveu na crônica "Heróis de um dia", publicada dias depois no Diário Nacional. Naquela noite, os manifestantes entraram em conflito com partidários do governo federal e quatro jovens morreram baleados - Miragaia, Martins, Drausio e Camargo -, cujas iniciais foram usadas para nomear a organização MMDC, que passou a arregimentar civis clandestinamente.
Nas ruas e praças, esquinas e bares, o apelo à adesão era irresistível. Nas conversas com amigos, Mário só via empolgação com o movimento. Ainda em maio, Guilherme de Almeida e seu irmão Tácito, por exemplo, lideraram com outros intelectuais, jornalistas, políticos, profissionais liberais e escritores a criação da Liga da Defesa Paulista, para mobilizar a participação civil. Alcântara Machado, Menotti de Picchia, Couto de Barros, Paulo Duarte, René Thiollier, todos estavam se envolvendo.
Os mais entusiasmados embarcaram na canoa furada do separatismo, como Rubens Borba de Moraes, velho amigo de Mário desde antes do Modernismo, e Monteiro Lobato, que propunha hegemonia paulista ou separação. Mas eram uma minoria, embora tenha até prejudicado os constitucionalistas, pois a ideia separatista foi usada pelo governo como demonstração de que os paulistas tinham preconceito contra o resto do Brasil.
Mário não aderiu e nem levava a sério os separatistas. Para ele, tinham "peito ferido, não cabeça organizada."
Em julho, o inverno do descontentamento paulistano chegou ao paroxismo. Na manhã do dia 10, um domingo, Mário se levantou alarmado com as notícias no rádio: na noite anterior uma guarnição do Exército e soldados da Força Pública juntamente com milícias de civis armados haviam ocupado pontos estratégicos da cidade, as aulas escolares estavam canceladas até segunda ordem, o interventor federal Pedro de Toledo havia rompido com o governo central e se aliado aos rebeldes, vários postos de alistamento de voluntários já estavam criados em diferentes pontos, as comunicações telefônicas e telegráficas com o Rio de Janeiro estavam interrompidas.
Aconteceu o que Mário temia: o embate político se transformara em guerra. Perplexo, saiu para conversar com amigos sobre os acontecimentos. Adorava a sua cidade e dela se orgulhava, mas sem bairrismo, seu espírito cosmopolita rejeitava até mesmo a idealização patriótica. Com pesar, ouviu seus amigos e seu irmão Carlos que apoiavam entusiásticos a sublevação e estavam dispostos a partir para as trincheiras. Aparentemente Minas Gerais, Mato Grosso e os estados do Sul estavam aderindo. O otimismo era total.
Mário voltou triste para casa. Abominava a guerra, o "pragmatismo irracional" de todas as guerras. E tinha consciência de que era uma guerra insuflada pelas elites paulistanas, frustradas com a perda de poder após a Revolução de 30.
Nos dias seguintes a cidade foi tomada por um arrebatamento cívico. Manifestos, slogans, bandeiras, faixas, panfletos, cartazes, comícios - tudo por São Paulo, todos contra os "ditatoriais".
Aquela unanimidade raivosa deixou Mário inicialmente exasperado, desorientado, sofrendo com um conflito de consciência. Não podia se omitir, seria considerado derrotista ou, pior, covarde. Mas por considerar a guerra um crime, não pretendia se alistar, e tampouco vincular seu nome a esse crime. O dilema durou só alguns dias. Aos poucos ele se converteu num patriota.
Foi conversar com Paulo Prado e Alcântara Machado sobre a situação da Revista Nova. Não havia mais condições financeiras nem políticas para elucubrações puramente culturais. Decidiram interromper a publicação.
Em casa ele incentivou a mãe, a tia e a irmã a colaborarem no apoio logístico, doando roupas, jóias, anéis outros bens; ele próprio contribuiu doando roupas, livros e revistas para hospitais e um dinheiro que tinha guardado para viagens. No Conservatório ele exortou as alunas a participarem de acordo com suas aptidões, promoveu uma reunião da congregação na ausência do diretor, propondo a entrega de um donativo em dinheiro, e o prédio da escola foi cedido à Cruz Vermelha.
Foi à sede da Liga de Defesa Paulista, na Rua Barão de Itapetininga, 6, e se colocou à disposição para executar quaisquer tarefas que lhe fossem ordenadas. Foi enviado para ajudar em postos de alistamento, fazer censura no correio militar, escrever folhetos de propaganda. De manhã fazia seus trabalhos pessoais em casa e à tarde ia para a Liga, às vezes permanecendo nas tarefas até às dez horas da noite.
Em suas crônicas aos domingos no Diário Nacional não comentava a guerra civil explicitamente. Sua única referência a isso foi numa série iniciada no dia 17 de julho com o título geral "Folclore da Constituição". Os textos incluíam comentários sobre cartas de soldados, historinhas e anedotas, sempre relacionadas à chamada Revolução Constitucionalista, mas com um linguajar pitoresco e bem-humorado.
A partir de agosto, passou a trabalhar também no Jornal das Trincheiras, na verdade um boletim, lançado no dia 14 daquele mês. Era o órgão oficial da rebelião, criado pela Liga de Defesa Paulista, por incumbência do Comando Supremo do Exército Constitucionalista. O redator-chefe era Guilherme de Almeida, que havia partido com o primeiro batalhão de voluntários, mas fora chamado de volta para assumir a direção do periódico.
Bissemanal, com circulação aos domingos e quintas-feiras, era distribuído principalmente nas frentes de combate. Inicialmente a redação funcionou na sede da Liga. A partir do número 4 passou a ocupar três salas no 4º andar do enorme Edifício Pirapitingui (já demolido), um prédio art déco na Rua João Brícola, 10, esquina com Rua Boa Vista, Centro de São Paulo.
A linguagem do periódico era triunfalista, como sempre acontece nos meios de comunicação em épocas de guerra, e as matérias incluíam depoimentos de soldados, comunicados do Serviço de Publicidade da Liga sobre as heróicas batalhas nas principais frentes, trechos de noticiário dos jornais, mensagens de incentivo aos voluntários, charges e tiras de humor, e de vez em quando artigos ufanistas com pretensões literárias.
Nenhuma matéria era assinada, com raras exceções, como dois textos subscritos com as iniciais "V.Cy.", de Vivaldo Coaracy, alguns do tenente Juó Bananére, e um de Guilherme de Almeida, que no número 8 escreveu na capa um texto curto sobre o 7 de setembro, enfatizando que o grito da Independência foi dado em solo paulista.
O boletim durou treze edições, entre 14 de agosto e 25 de setembro. Uma das seções mais lidas era a coluna "Notícias Militares", com notícias sobre batalhas nas principais frentes (Vale do Paraíba, fronteira de Minas e sul do estado), informações sobre adesões, promoções de soldados e alistamento de voluntários.
Embora sem assinatura, pelo menos um texto dessa coluna pode ser atribuído a Mário, por um motivo simples: a grafia. Ele foi o único escritor brasileiro a escrever "milhor", em vez de "melhor". E adotou essa grafia num texto publicado no nº 2 do boletim. Como em toda redação, principalmente de uma publicação que não contava só com jornalistas profissionais, os textos passavam por um redator que fazia o copidesque, enxugando os textos e os adaptando para a linguagem jornalística.
"NOTICIAS MILITARES
Operações Militares:
"Dia 12 de Agosto - As tropas constitucionalistas mantiveram-se em defensiva na maioria dos setores. Assinala-se, durante o dia, forte pressão do inimigo no setor de Cunha. O ataque é repelido com perdas elevadas para os ditatoriais. Na frente de Queluz, as tropas constitucionalistas iniciam uma ofensiva com auxílio da aviação. As perspectivas são esplêndidas. Milhora imediatamente a situação estratégica das nossas forças e são feitos vários prisioneiros, entre os quais um primeiro tenente do exército.
Dia 13 de Agosto - A ofensiva das tropas constitucionalistas, iniciada no dia anterior no setor de Queluz, generaliza-se por larga extensão da frente norte. A nossa aviação toma parte importante nessa ofensiva, tanto em Queluz como em Areias e Cunha. Os nossos aviões voltam sem dano às suas bases. Por seu turno, durante o dia, alguns aviões inimigos pretendem danificar as instalações elétricas da Light, em Cachoeira, mas não conseguem o intento.
Dia 14 de Agosto - Desencadeada à tardinha, a ofensiva das tropas constitucionalistas no setor de Pinheiros, próximo de Queluz. a luta prossegue noite a dentro. A nossa ala esquerda, onde está o Batalhão Paes Leme, sob o comando do major Pietscher, numa formidável carga de baioneta, toma uma trincheira inimiga. Também no setor do Tunel, as tropas constitucionalistas desencadeiam um assalto violentíssimo contra os ditatoriais, aprisionando muitos destes. E enquanto as nossas tropas se cobrem de vitorias, um avião inimigo metralha vivamente um trem em que viajam o cel. Euclides de Figueiredo e seu Estado Maior. Aliás sem o menor dano para nós. Dia glorioso para os constitucionalistas em toda a frente norte. Mais de 100 prisioneiros.
Dia 15 de Agosto - A noite para o dia 15 serviu para consolidação das posições ganhas pelos constitucionalistas no dia anterior. Durante o dia 15 voltamos a atacar em alguns setores, com novas perdas graves para o inimigo. Só prisioneiros, em 24 horas, as tropas constitucionalistas fizeram perto de 140. A atividade militar está desencadeada mais ou menos por todos os setores. Na frente sul a nossa pressão sobre o inimigo persevera intensa, sem que ocorra porém sucesso algum de caráter decisivo.
Dia 16 de Agosto - O inimigo inicia durante a noite de 15, algumas ofensivas. Foram de especial violência as registradas no setor de Cunha, na frente norte, e no setor de Buri, na frente sul. São ataques violentíssimos estes, antecipados por enorme preparo de artilharia. Fizeram perto de mil tiros. Mas, essa ofensiva não conseguiu destruir as nossas posições. O batalhão 'Borba Gato' provou admiravelmente a sua eficiência nesse combate. Na região de Cunha os ditatoriais iniciaram também veemente ofensiva, bem como nos setores de Tunel e de Cruzeiro. Nada conseguiram. Mais um dia excelente para as tropas constitucionalistas."
Ao mesmo tempo Mário participava de outros eventos relacionados à guerra. No final da tarde de 21 de setembro de 1932, ele foi ao Clube Comercial, na Rua Líbero Badaró para uma reunião com mais de 60 escritores, artistas e intelectuais - entre eles Guiomar Novais, Guilherme de Almeida, Couto de Barros, Francisco Mignone, Souza Lima e Camargo Guarnieri.
A finalidade da reunião era discutir um documento de protesto contra o bombardeio de Campinas por aviões do governo, sem visar a alvos militares. Diversas casas, hoteis e prédios tinham sido atingidos, causando mortes de civis. A cidade, a 100 quilômetros da capital, possuía importantes centros culturais e de pesquisa científica, como o Instituto Agronômico, Lyceu de Artes e Ofícios, Sociedade de Cultura Artística, Centro de Ciências, Letras e Artes.
A exemplo de outras entidades paulistanas que já tinham protestado, os intelectuais lançaram um manifesto assinado por todos os presentes.
Mas dez dias depois, a guerra acabou, mediante assinatura de um armistício entre o comandante da Força Pública de São Paulo e o general Góes Monteiro, em nome das tropas do governo.
Para Mário, a derrota trouxe sofrimentos de teor moral e financeiro. No dia 3 de outubro, o Diário Nacional foi obrigado a fechar e ele perdeu uma importante fonte de renda, enquanto os outros jornais paulistanos mais expressivos estavam tendo que remanejar os cargos na redação, sem poder aceitá-lo de imediato. Seu irmão e amigos paulistas que tinham participado do conflito estavam presos; os amigos mineiros eram agora politicamente "inimigos", pois Minas Gerais tinha apoiado o governo federal na guerra. Ele estava sozinho. Era o fim de um inverno infernal e o início de uma temporada no purgatório."

http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/1116148-leia-trecho-inedito-da-biografia-de-mario-de-andrade.shtml

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