Empreendo
a difícil e politicamente incorreta tarefa de tentar defender os
direitos dos estados norte-americanos do sul durante o período que ficou
conhecido como o da "guerra civil" americana (1861-1865). Difícil
porque o assunto encontra-se impregnado de um senso-comum que costuma
desqualificar e impedir a exposição de outra interpretação e de visões
distintas acerca dos fatos históricos. Recorrentemente, os que ousam
tentá-lo são tachados de racistas, de escravistas e de preconceituosos,
sendo injustamente desmerecidos. Por este motivo, em respeito ao
trabalho destes acadêmicos, propus-me a tentar prestar alguns
esclarecimentos para o leitor, expondo-lhe uma concepção não usual sobre
o assunto, a fim de que tenha acesso a outros lados da questão.
Notas:
[1]"X Amendment: The powers not delegated to the United States by the Constitution, nor prohibited by it to the States, are reserved to the States respectively, or to the people."
Rafael Salomão Aguillar é graduando de direito da PUC-Rio, está no 7º período e é fã do Tom Woods.
Publicado no site do Instituto Ludwig Von Mises Brasil.
Começo,
pois, por me referir a um grande erro, perpetrado pelo uso incorreto da
terminologia "guerra civil". Nunca houve uma guerra civil nos Estados
Unidos da América. O que ocorreu foi uma guerra de secessão. A diferença
é grande. Numa guerra civil, dois ou mais grupos rivais disputam o
controle de um país, como foi, verbi gratia, o notável episódio
espanhol, em que republicanos comunistas e nacionalistas franquistas
beligeraram durante três anos pelo controle do estado espanhol. No caso
americano, os estados do sul não lutaram porque queriam o domínio do
país; eles lutaram porque queriam se separar do país. Os sulistas não
almejavam comandar a União em Washington; seu real desejo era se separar
da União. O mesmo pode ser dito acerca da Revolução Farroupilha
(1835-1845) no Rio Grande do Sul.
Elucidada
essa questão de mera nomenclatura, podemos, destarte, nos aventurar
pela problemática jurídica em torno da guerra de secessão americana.
Ocorre que, ao contrário do que muitos pensam (ou são levados a pensar),
os estados do sul tinham ao seu dispor teses jurídicas que
salvaguardavam o seu direito de se separar da União federal. Não se
olvide que a federação era uma criação relativamente recente na época, e
que não havia nenhum "manual" universitário que a definisse e impedisse
a criação de teses contrárias. Analisemos, então, a situação.
Segundo
as aulas de Teoria do Estado ou de Direito Constitucional I, qual é a
diferença entre a federação estadunidense e a brasileira (esta última
sempre vista como sendo mais autoritária)? O Brasil era um estado
centralizado que se "federalizou", ao passo que as treze colônias
americanas, após uma guerra em conjunto pela sua independência, eram
treze estados distintos, que, por tratados de direito internacional,
aceitaram formar uma confederação e, ad posteriori, uma federação constitucional (a qual, é sabido, podemos meritar aos esforços argumentativos de Hamilton, Madison e Jay).
A
consequência desse processo ímpar de formação é que os estados
americanos gozam de uma autonomia incomparável com a dos entes
federativos estaduais brasileiros. A organização política idealizada
pelos founding fathers para os EUA rege-se pelo princípio de que
tudo aquilo que não for competência expressa da União cabe aos Estados, o
que pode ser inconfundivelmente atestado pela leitura da décima emenda.[1]
Esse
princípio foi de vital importância para a argumentação dos estados do
sul, pois, eis que, ao contrário da constituição brasileira (CF art. 1º,
caput), a carta magna americana não prevê em nenhum de seus
artigos que a União é indissolúvel. Uma vez que a constituição é silente
em relação à possibilidade de secessão, e tudo aquilo que não estiver
na mesma é de competência dos estados, deduziu-se que os estados teriam o
direito de se separar da União, à qual eles aderiram por livre e
espontânea vontade.
Além
disso, os estados de Virginia, New York e Rhode Island, ao assinarem a
constituição americana — aceitando, portanto, participar da federação —,
incluíram uma cláusula em suas adesões que lhes permitiria se separar
da União no caso de o novo governo tornar-se "opressor". Ora, outro
princípio que rege a federação americana é o que diz que não há, nem
pode haver, direitos diferentes entre os estados, os quais devem ser
radicalmente iguais em dignidade e direitos. Deste modo, podemos
concluir que absolutamente todos os estados teriam o direito, conferido
aos três supracitados, de se apartar da União.
Hoje, a visão de que as federações são indissolúveis é incontestável e pacífica na doutrina;[2]
mas nem sempre foi assim. Até aquela época, o conceito do que seria uma
federação ainda estava sendo construído. A Guerra de Secessão americana
foi responsável por sepultar e impedir o ressurgimento de qualquer tipo
de interpretação que desse azo à liberdade dos estados integrantes da
federação. Ela consolidou uma unificação nacional forçada e uma
centralização de poderes na União até então nunca antes vista. A partir
desse momento, os estados passariam a ser encarados como uma mera
subdivisão política de uma única e indivisível nação. Isto é algo de
surpreender, pois esta concepção nacionalista era praticamente
inexistente na América do Norte daquela época. Prova disso é que a
própria consciência da população americana, juntamente com o modo como
se referiam ao seu país, mudou. Anteriormente falava-se em "THESE United
States", passando-se a um "THE United States"[3].
Vale dizer, o sentimento nacionalista e a própria "nação americana"
estavam sendo inventados naquele momento; mais ou menos na mesma época
em que um processo semelhante estava ocorrendo no Brasil, com o
movimento romântico do II Reinado (1840-1889) e o esforço destes autores
em criar uma identidade nacional brasileira.[4]
Penso,
pois, ter ficado claro a questão de que, nos seus aspectos jurídicos,
os estados do sul tinham sim um embasamento para a sua decisão de se
separar. Mas e quanto à questão da escravidão, que sempre penetra o
debate acerca da secessão? Não há dúvidas de que a escravidão é um
fenômeno hediondo e que atenta contra o direito natural.[5]
Contudo, o que estava em debate não era se a escravidão era certa ou
não, mas o direito constitucional de secessão. Aliás, a escravidão,
igualmente, jamais fora o debate central naquela época. A guerra não foi
travada para libertar os escravos e, talvez com a exceção do Haiti, os
EUA foram o único país da América que "precisou" de uma guerra para
libertar seus escravos... Todos os demais, Brasil incluso, o fizeram de
maneira pacífica (o que não quer dizer, evidentemente, que não houve ao
longo da História louváveis resistências negras).
O
real motivo pelo qual a guerra foi travada foi a discordância entre os
projetos políticos dos estados do norte e do sul americanos. O sul,
agroexportador, pretendia o estabelecimento de uma nação pró-livre
comércio, com baixas tarifas alfandegárias, ao passo que o norte, mais
voltado para uma incipiente produção industrial, intentava proteger seus
mercados internos. Uma vez que a União comanda a política externa do
país, ambos os lados pelejavam no Congresso propugnando seus interesses.
O norte, entretanto, levava vantagem, pois dominava ambas as casas do
Congresso, devido a um fato curioso que merece ser referido.
O voto para a House of Representatives
(Câmara dos Deputados) é proporcional, como todos os leitores hão de
saber, mas, como os negros não eram considerados cidadãos, os estados do
norte exigiam que eles não fossem contados como população, de modo que
os estados do sul tivessem menos deputados. Um consenso foi encontrado
quando os estados do norte concordaram em computar a população negra dos
estados do sul como três quintos da branca, ou seja: 1 negro = 3/5 de
um branco. Mesmo assim, os estados do sul continuaram em minoria no
legislativo federal.[6]
A
situação tornou-se incontornável quando da eleição do candidato
republicano Abraham Lincoln em 1860. A vitória deste político racista [7]
e abolicionista (por mais incoerente que possa parecer) fez com que a
Carolina do Sul, seguida depois por Flórida, Texas, Alabama, Georgia,
Mississipi e Louisiana, declarassem sua independência, formando os
Estados Confederados da América. O resto é história.
Lincoln
lutou incansavelmente para preservar a União (e não para libertar os
escravos), deixando um saldo de mais de 600 mil mortos (baixas quatro
vezes maiores que as da guerra do Vietnã e três vezes as da I Grande
Guerra Mundial).[8] Ele saiu vitorioso, mas morreu sem sabê-lo: faleceu assassinado antes do fim da guerra, enquanto assistia à peça Our American Cousin no teatro Ford de Washington, aos 14 de abril de 1865.
Notas:
[1]"X Amendment: The powers not delegated to the United States by the Constitution, nor prohibited by it to the States, are reserved to the States respectively, or to the people."
[2] Por todos, conferir: Dallari, Dalmo de Abreu. "Elementos de Teoria Geral do Estado". 28ª edição. Ed. Saraiva. 2009. Pág. 259. "Na federação não existe direito de secessão.
Uma vez efetivada a adesão de um Estado este não pode mais se retirar
por meios legais. Em algumas Constituições é expressa tal proibição, mas
ainda que não o seja, ela é implícita." [Grifo no original].
[3] Katcher, Phillip. "The Civil War Day by Day". 2nd edition. Chartwell Books, Inc. 2010. Pág. 189.
[4] Cereja, William Roberto e Magalhães, Thereza Cochar. "Literatura Brasileira". 3ª edição. Editora Atual. 2005. Pág. 201 e 202.
[5] Para uma condenação da escravidão, conferir: carta-encíclica Catholicae Ecclesiae (1890), de Sua Santidade o Papa Leão XIII (1878-1903).
[6] Woods Jr., Thomas E. "The Politically Incorrect Guide to American History". 1st edition. Regnery Publishing, Inc. 2004. Pág. 18.
[7] Conferir, por todos, as teses de Lerone Bennett Jr.; "Forced into Glory: Abraham Lincoln's white dream" e Thomas J. DiLorenzo, The Real Lincoln: A New Look at Abraham Lincoln, His Agenda, and an Unnecessary War e Lincoln Unmasked: What You're Not Supposed to Know About Dishonest Abe
Em um discurso de 1848, Lincoln chegou a declarar:
"I
will say then that I am not, nor ever have been in favor of bringing
about in any way the social and political equality of the white and
black races, that I am not nor ever have been in favor of making voters
or jurors of negroes, nor of qualifying them to hold office, nor to
intermarry with white people; and I will say in addition to this that
there is a physical difference between the white and black races which I
believe will forever forbid the two races living together on terms of
social and political equality. And inasmuch as they cannot so live,
while they do remain together there must be the position of superior and
inferior, and I as much as any other man am in favor of having the
superior position assigned to the white race."
"Digo,
portanto, que não sou, nem jamais fui, a favor de criar, de qualquer
maneira que seja, a igualdade social e política das raças branca e
preta; que não sou, nem nunca fui, a favor de transformar negros em
eleitores ou jurados, nem de habilitá-los a exercer cargos públicos, nem
de permitir seu casamento com pessoas brancas; e direi, adicionalmente,
que há uma diferença física entre as raças branca e preta que, creio
eu, irá para sempre proibir as duas de viverem juntas em termos de
igualdade social e política. E, visto que elas não podem conviver desta
forma, enquanto elas permanecerem em coexistência terá de haver a
posição do superior e do inferior, e eu, assim como qualquer outro
homem, sou a favor de que a posição superior seja atribuída à raça
branca."
Abraham Lincoln, Debate with Stephen Douglas, Sept. 18, 1858, in Abraham Lincoln: Speeches and Writings, 1832-1858 (New York: Library of America, 1989), pp. 636-637.
Por
que, então, ele era abolicionista? Acredita-se que ele desejava,
destarte, reservar as novas terras do oeste para os brancos; o que
ajudaria a explicar, outrossim, os seus programas de deportação de
negros de volta para a África, em especial para a colônia americana da
Libéria, sob o pretexto de permitir-lhes "a volta para casa".
[8]http://en.wikipedia.org/wiki/United_States_military_casualties_of_war e http://www.civilwarhome.com/casualties.htm. Disponíveis em 26/02/2011.
Publicado no site do Instituto Ludwig Von Mises Brasil.
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