quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Trem-Bala ou "Trem-Mala"?

O Brasil tem uma antiga tradição de superfaturamento de obras públicas e de projetos de reduzida utilidade para a sociedade, cujo objetivo principal parece ser o de proporcionar oportunidades de polpudos ganhos para as partes neles envolvidas. Para não sair do Rio de Janeiro, as primeiras têm um exemplo didático na infraestrutura erguida a toque de caixa (e com poucas licitações e controles) para os Jogos Panamericanos de 2007, e os segundos, na faraônica, desnecessária e inconclusa Cidade da Música. Agora, o candidato a campeão absoluto dessa última modalidade é o Trem de Alta Velocidade, mais conhecido como trem-bala, para efetuar a ligação Rio-São Paulo-Campinas, que o Governo Federal pretende licitar ainda este ano, entregando-o como um fato consumado ao sucessor do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Trata-se de um projeto monumental sob todos os aspectos. O traçado entre o Rio e Campinas, com escalas em Barra Mansa (ou Volta Redonda), Aparecida, São José dos Campos e São Paulo, terá 511 km, para um tempo total de viagem de pouco menos de duas horas e meia. Devido às especificações técnicas necessárias para o tráfego das composições capazes de superar os 300 km/h, terão que ser construídos 108 km de pontes e viadutos e 91 km de túneis, dispendiosas obras de arte que representam quase 40% do traçado.

O custo estimado do megaprojeto é de R$ 33 bilhões, de longe o mais caro do Plano de Aceleração do Crescimento (PAC), a menina dos olhos do presidente Lula. Deste montante, o vencedor da licitação poderá pleitear 60% do valor em financiamentos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), quase R$ 20 bilhões. Além disto, o empreendimento deverá ter uma participação pública direta no valor de R$ 3,4 bilhões, sendo R$ 2,3 bilhões destinados às necessárias desapropriações. Como se pode imaginar, sem tais recursos públicos o projeto não sairá do papel.

Mas o grande problema não se refere aos aspectos técnicos ou até mesmo ao custo em si próprio, pois este se justificaria se se tratasse de um projeto de grande necessidade para o País – a questão é que está muito longe de ser.

Segundo os dados oficiais, o projeto foi concebido para atender a uma demanda anual estimada em cerca de 11 milhões de passageiros em 2014, dos quais se prevê que o supertrem poderá arrebanhar cerca de 53%. Para referência, em 2007, a Ponte Aérea transportou cerca de 4 milhões de passageiros e, em 2009, os ônibus transportaram 1,5 milhão de pessoas entre o Rio e São Paulo. Arredondando, consideremos que aviões e ônibus transportem atualmente 6 milhões de pessoas entre as duas cidades a cada ano; para justificar os indicadores "oficiais", seria preciso que esse número duplicasse em poucos anos, algo que não parece fácil de ocorrer.

Para evitar prejuízos para o futuro concessionário da linha, o contrato de empréstimo do BNDES incluirá uma cláusula que prevê eventuais reduções dos juros, no quinto e no décimo dos 30 anos de prazo do mesmo, caso a movimentação de passageiros fique abaixo do esperado. Porém, a menos que a demanda "oficial" tenha sido bastante superestimada, não é preciso ser especialista em transportes para se antecipar que por um bom tempo não haverá passageiros suficientes para justificar o supertrem, ainda mais com o preço das passagens rivalizando com ou até superando as aéreas (que poderiam ser ainda mais reduzidas com um entendimento entre as empresas aéreas no sentido de retomar de uma forma atualizada o formato integrado da antiga Ponte Aérea). Assim sendo, uma pergunta precisa ser adequadamente respondida: por que essa urgência em construí-lo?

Evidentemente, ninguém pode ser contra a expansão da malha ferroviária, muito ao contrário, já que o Brasil é o único país de dimensões continentais que despreza os trens: os EUA têm 226.000 km de ferrovias; a Rússia, 128.000 km; a China, 86.000 km; o Canadá, 57.000 km; a Índia, 63.000 km; o Brasil não chega a 30.000 km, dos quais apenas a terça parte encontra-se em uso regular.

Esse descaso histórico é ainda mais agravado pelo fato de o território brasileiro dispor de condições extremamente favoráveis às ferrovias, com um relevo pouco acidentado, predominantemente constituído por planícies e planaltos, sendo 97% situado abaixo de 900 m de altitude (57% entre 200-900 m e os restantes 40% abaixo de 200 m).

E, como se sabe, o transporte ferroviário de cargas a distâncias superiores a 400-500 km costuma ser de três a cinco vezes mais barato que o rodoviário, que responde por quase dois terços da movimentação de cargas no Brasil. Esta dependência tem um elevado preço no consumo de derivados de petróleo e altos custos de fretes, acrescidos dos prejuízos decorrentes de acidentes e desgaste dos veículos nas precariamente conservadas rodovias nacionais.

Não obstante, e principalmente quando recursos públicos estiverem envolvidos, a seleção de projetos de infraestrutura de transportes deveria ser feita levando-se em conta a maximização dos seus benefícios para a economia e a sociedade em geral – e não meramente a das vantagens financeiras para construtores, concessionários e investidores (além dos inevitáveis beneficiários na administração pública).

A propósito, o recurso aos empréstimos do BNDES e outros fundos públicos levanta outra questão: por que eles não têm sido usados em grande escala para financiar projetos de alcance muito maior?

Bem mais relevante para o País seria, por exemplo, completar uma ligação com a costa do Pacífico da América do Sul, que não dispõe de uma única ferrovia transcontinental. Além de abrir um precioso corredor de integração física do subcontinente, o acesso aos portos do Pacífico proporcionaria ao Brasil uma considerável redução dos custos de suas exportações aos países asiáticos.
Igualmente, os R$ 20 bilhões do BNDES separados para o trem-bala poderiam custear uma considerável – e inadiável – expansão dos metrôs do Rio de Janeiro e São Paulo, sem a qual as duas megalópoles correm o risco de colapsos na circulação urbana, num futuro muito próximo.

Um estudo de 2009 da Fundação Dom Cabral estimou que, até 2015, as duas cidades poderão atingir um estágio de congestionamentos contínuos no horário comercial, praticamente inviabilizando as suas malhas urbanas. O estudo demonstrou que os paulistanos perdem em média três horas e os cariocas, duas horas diárias em engarrafamentos de trânsito. Os prejuízos anuais causados pelos congestionamentos, em horas de trabalho perdidas, combustível desperdiçado, poluição adicional, problemas de saúde e outros impactos, foram estimados em R$ 31 bilhões para São Paulo e a metade para o Rio. Embora tais custos jamais sejam considerados pelos tomadores de decisões, está mais que na hora de se começar a levá-los em conta.

A Linha 3 do metrô carioca é um exemplo clássico de prioridade relegada a segundo (ou terceiro) plano pelo descaso de autoridades públicas e lideranças políticas com o bem comum, que deveria ser a orientação fundamental das políticas públicas. Com um traçado de 36 km entre Guaxindiba (distrito de São Gonçalo limítrofe com Itaboraí) e a estação Carioca da Linha 1, permitiria fazer em cerca de 45 minutos um trajeto que atualmente leva quase duas horas, de automóvel, ônibus ou van, isto quando não ocorrem grandes engarrafamentos na Ponte Rio-Niterói ou em seus acessos. E a sua importância aumenta ainda mais devido ao inevitável aumento da circulação de pessoas no eixo Rio-Niterói-São Gonçalo-Itaboraí, após o início das operações do Complexo Petroquímico de Itaboraí, a partir de 2014. O projeto integral, que inclui um túnel de 5,5 km sob a baía de Guanabara, tem um custo estimado em menos de R$ 4 bilhões, mas a sua construção tem sido sistematicamente protelada com o eterno argumento da falta de recursos.

Vale recordar que o metrô do Rio tem apenas 42 km de linhas, para o transporte de 600 mil passageiros por dia. O de São Paulo tem 66 km, mas, com uma melhor articulação com a rede ferroviária urbana tradicional, transporta cinco vezes mais passageiros. Para comparação, o da Cidade do México, cuja construção foi iniciada na mesma época que os brasileiros, na década de 1970, tem 201 km e atende diariamente a quase 4 milhões de passageiros.

Definitivamente, investimentos como os citados teriam efeitos multiplicadores e benefícios incomparavelmente maiores para a população e a economia que os proporcionados pelo supertrem, que praticamente se limitaria a uma opção adicional para o tráfego de passageiros entre cidades já convenientemente servidas por aviões e ônibus. Portanto, na forma como está sendo apresentado, o projeto do trem-bala está mais para "trem-mala" – uma portentosa mala de lucros para um seleto grupo de privilegiados e uma salgadíssima conta para a cidadania, que, além de financiar boa parte dela com seus impostos, ficaria desprovida dos benefícios de outros empreendimentos realmente prioritários.
O autor é geólogo, diretor do Movimento de Solidariedade Ibero-americana (MSIa) e co-autor do livro A hora das hidrovias: estradas para o futuro do Brasil (Capax Dei, 2008); geraldo@msia.org.br Este endereço de e-mail está protegido contra spambots. Você deve habilitar o JavaScript para visualizá-lo. .

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Ótima análise. Esse negócio de trem-bala pode ser que no futuro possa vir a vingar, mas hoje não há a necessidade para tal e também um custo que justifique esse empreendimento.

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