sexta-feira, 27 de agosto de 2010

O que é a Tradição? - por Julius Evola

Há duas razões pelo qual hoje é oportuno precisar o conceito de Tradição em sua acepção particular, pelo qual se converteu muito corrente usar tal termo com letra maiúscula.



A primeira razão é o interesse crescente que a ideia de Tradição como ponto de referência suscitou e continua suscitando nos ambientes de cultura e contestação de direita, em especial entre os pertencentes à nova geração.



A segunda razão se refere ao facto que, ao mesmo tempo, e se pode dizer que justamente por haver se constatado tal interesse, se formularam intentos de sustentar uma internegração caduca e tíbia do conceito de Tradição, quase para suplantar o originário e integral e substituí-lo com um conteúdo menos comprometido e mais acomodado, de modo tal de permitir a continuidade das routines de uma mentalidade em grande medida conformista. Se poderia falar, a tal respeito, usando um termo francês, de uma escamotage.



E é assim como aconteceu, por exemplo, o distanciamento de certas pessoas, que atraídas em um primeiro momento pelo conceito de Tradição, terminarão aderindo a um “tradicionalismo católico”(1). Acerca do sentido interno de tal distanciamento são bastante significativas as palavras expressadas por um escritor expoente desta direcção, em uma entrevista concedida por ele a Gianfranco de Turris. O escritor em questão reconheceu que da mesma maneira que outros de sua geração e das sucessivas, em um primeiro momento se interessou pela ideia tradicional, especialmente pelas suas aplicações políticas, mas logo distanciou-se sentindo que as coisas aconteciam como em uma “sã cura de helioterapia”, havia que “retirar-se do sol antes de ser queimado”.



Evidentemente este não é senão um modo elegante para dizer que não se suportava a força de certas ideias formuladas sem atenuações, daí então o distanciamento e a adesão ao “tradicionalismo católico”. Um caso importante é o constituído por um livro, editado por Bompinani que se intitula: “O que é a Tradição?” Aparte do facto de que não se trata de uma exposição sistemática, senão de um grupo de ensaios que muitas vezes tem pouco que ver com o tema, o autor dá novamente uma versão tíbia da Tradição, com visíveis preocupações de carácter religioso e moralizante, o alarde expressado através de citações múltiplas de uma cultura variada vale mais para confundir que para esclarecer, dada a falta de um rigoroso quadro sistemático. É bastante visível que este livro foi justamente escrito em relação ao mencionado crescente interesse pela ideia de Tradição. Há um aspecto que merece ser assinalado, o autor do livro em questão, que pretende dizer o que é ou que seria a Tradição, por certo não sonhou jamais de aproximar-se a tal ordem de ideias até não faz muito tempo quando andava junto com Moravia e com outros expoentes da intelectualidade esquerdista italiana. Ele ignora que o conceito integral de Tradição havia sido já formulado nos anos 20 por René Guénon(2) e seu grupo, e depois em nossa obra Revolta contra o Mundo Moderno, editada em 1934 na Itália e em 1935 na Alemanha, a primeira parte desta obra se intitula justamente “O mundo da Tradição”. O autor aludido cita apenas um par de vezes a contribuição da corrente guenoniana, entretanto ignora sistematicamente a nossa. Lamentavelmente ele dispõe de um círculo bastante vasto de leitores, pelo qual sua tíbia apresentação do que seria a Tradição resulta sumamente perniciosa.



O autor em questão se perde em uma discussão quase teológico-escolástica quando afirma que a “tradição por excelência é a transmissão do conhecimento do objecto óptimo e máximo, o conhecimento do ser perfeitíssimo”. Isto poderá valer no campo contemplativo-religioso, e só com referência ao mesmo se pode dizer que a Tradição “se concreta em um conjunto de meios: sacramentos, símbolos, ritos, definições discursivas cujo fim é o de desenvolver no homem aquela parte, faculdade, potência ou vocação, que lhe coloca em contacto com o máximo do ser que lhe seja consentido, colocando-o por cima de suas constituições corpórea ou psíquica, o espírito ou intuição intelectual”. Se nestes termos é reconhecida a definição de uma hierarquia “entre os seres relativos e históricos, fundada em seu grau de distanciamento a respeito da ideia do puro ser”, é evidente que aqui se fixa em esfera abstracta, e isso se confirma pelo fato que o autor em tela alimenta uma espécie de rechaço pelas formas de realidade política, por tanto também por tudo o que é Estado, hierarquia política e imperium, em conformidade com certas concepções espiritualistas cristãs (co mo aparece claro também no “tradicionalista” Leopold Ziegler). É um facto que a Tradição se manifesta em sua plena potência formativa e animadora justamente no domínio da organização político-social, para conferir à mesma um significado e uma legitimação superior. Como um exemplo importante que persistiu até à época moderna se pode indicar o Japão(3).



Podem-se distinguir dois aspectos da Tradição, um referido à metafísica da história e a uma morfologia das civilizações, o segundo a uma internegração “esotérica”, ou seja, de acordo com a dimensão em profundidade do diferente material tradicional.



Sabe-se que o termo tradição vem do latim tradere, ou seja, transmitir. Assim o mesmo tem um conteúdo indeterminado, pelo qual se observa seu uso nos contextos mais variados e profanos. “Tradicionalismo” pode significar conformismo, e acerca disso Cherterton disse que a tradição é a “democracia dos mortos”, assim como na democracia a maioria se conforma à opinião de uma maioria de contemporâneos, do mesmo modo acontece no tradicionalismo conformista o qual segue a da maioria daqueles que viveram antes de nós. Quiçá poucos saibam que o termo Kabbala tem literalmente o sentido de tradição, mas aqui é em relação com a transmissão de um conhecimento metafísico e da internegração “esotérica” da correspondente tradição, pelo qual nos aproximamos acerca daquilo do que é a Tradição.



No que se refere ao domínio histórico, a Tradição vincula-se àquilo que poderia denominar-se como uma transcendência imanente. Trata-se de uma ideia recorrente de que uma força do alto actuou em uma ou outra área ou em um ou outro ciclo histórico, de modo que valores espirituais e supraindividuais constituíram o eixo e o supremo ponto de referência para a organização geral, a formação e a justificação de toda realidade e actividade subordinada e simplesmente humana. Esta força do alto é uma presença que se transmite, e esta transmissão de dita força, que se encontra por cima das meras contingências históricas, constituía justamente a Tradição. Normalmente a Tradição tomada neste sentido é levada por quem se encontra no vértice das correspondentes hierarquias, ou por uma elite, e em suas formas mais originárias e completas não há um separação entre o poder temporal e autoridade espiritual(4), sendo a segunda, em matéria de princípios, o fundamento, a legitimação e o crisma da primeira. Como exemplo característico se pode citar a concepção extremo-oriental do soberano como “terceira força entre o céu e a terra”, concepção que se reencontra na realeza nipónica cuja tradição persiste até hoje.



No aspecto aqui indicado de uma “transcendência imanente”, o tradere, a transmissão se refere não a algo abstracto e contemplativo, mas a uma energia que por ser invisível não é menos real. Aos chefes e a uma elite cabe a tarefa de transmissão dentro de determinados marcos institucionais, variáveis, mas homologáveis em sua finalidade. É bastante evidente que a mesma está mais garantida se pode ser paralela a uma continuidade de estirpe ou sangue tutelada por normas rigorosas. De facto, quando a cadeia de transmissão se interrompe, é sumamente difícil restabelecê-la. Nesta perspectiva a Tradição é a antítese de tudo o que é democracia, igualitarismo, primazia da sociedade sobre o Estado, poder que vem de baixo e coisas similares.



Para o segundo aspecto da Tradição, é necessário remeter-se ao plano doutrinário, e aqui o ponto de referência e o que pode denominar-se a unidade transcendente e oculta das diferenças tradições(5). Pode tratar-se de tradições de tipo religioso, mas também de outro género, tais como sapiênciais ou de mistérios. Aquilo que foi chamado de “método tradicional” consiste em descobrir uma unidade ou correspondência essencial de símbolos, de formas, de mitos, de dogmas, de disciplinas, mais além das expressões múltiplas que os correspondentes conteúdos de significado podem assumir nas diferentes tradições históricas. Tal unidade pode resultar a partir de uma penetração em profundidade do diferente material tradicional: indagação — isto deve ser destacado — que deve ser distinta das investigações da denominada ciência comparada das religiões universais, a qual se atém à superfície e tem um carácter empírico e não metafísico. A faculdade requerida, é aquela que se pode denominar como “intuição intelectual ou espiritual”, intuitio intellectualis(6). Só a possessão desta rara capacidade intelectual pode dar o sentido da medida e prevenir o que se poderia denominar a “superstição da Tradição”. Com efeito, há pessoas que se entregam à fantasia e que descobrem em tudo conteúdos tradicionais, ainda quando os mesmos são imaginários ou se trata de contextos espúrios e primitivos. É o análogo do chamado “delírio internegrativo” dos freudianos, os quais querem ver em tudo a acção dos complexos sexuais.



A origem das formas tradicionais é um problema complexo. No que diz respeito ao primeiro dos aspectos aqui aludido, ou seja, o aspecto histórico é muitas vezes formulada a ideia de uma tradição primordial, da qual derivaram as sucessivas e particulares tradições. Mas se permanecemos no plano histórico, este conceito deve ser articulado. A hipótese de uma tradição primordial hiperbórea e nórdico-ocidental no que se refere ao grupo de civilizações tradicionais da área indo-europeia, não se pode fazer demasiado uso no que concerne, por exemplo, às formas tradicionais extremo-orientais, as quais devem remeter-se a um diferente tronco de origem. Mas aqui pode impor-se o ponto de vista a seguir para o segundo aspecto do problema, que é a explicação de concordâncias e de correspondências essenciais de conteúdos tradicionais. É simplista e em parte supersticiosa a ideia de personagens “iniciados” e similares, que nos vários casos operaram conscientemente na origem de toda tradição. Ainda se a ideia quiçá não pode ser aceita por todos sem dificuldade, igualmente muitas vezes se deve pensar em influências(7) por assim dizer, que intervêm na história e nos desenvolvimentos das tradições por detrás dos bastidores, sem que os representantes das mesmas se dêem conta.



Há casos também de um “voltar a brotar” de uma única influência com notáveis distâncias de espaço e tempo, portanto, sem uma transmissão materialmente relevante, quase como um redemoinho que desaparece em um determinado ponto da corrente de um rio para voltar a formar-se em outro ponto. É o que se deve pensar em muitos casos de correspondências tradicionais, em elementos particulares, mas também nas estruturas de conjunto de determinadas civilizações, as linhas de vinculação com a superfície são inexistentes, algo imponderável entra em jogo servindo-se ao máximo de elementos de sustentação. Por exemplo, a génese da antiga romanidade, em tudo aquilo onde esta reproduz formas variadas da tradição primordial indo-europeia, pode ser visto sob este aspecto. Enfim, se deve considerar o caso de que a influência em questão actue sucessivamente, ou seja, no desenvolvimento posterior como tradição de uma matéria originária, transformando-a, enriquecendo-a e também a rectificando. Em certa medida, isto parece ter acontecido na formação da tradição católica a partir da matéria proporcionada pelo cristianismo primitivo.



A introdução da ideia de tradição vale para libertar toda tradição particular de seu isolamento, remetendo o princípio gerador da mesma e de seus conteúdos essenciais a um contexto mais vasto, em termos que são de uma efectiva integração. Para desdenhá-la se encontram tão só eventuais pretensões de exclusivismo sectário(Cool e de privilégio. Reconhecemos que isto pode molestar e criar certa desorientação em quem se sentia muito seguro em uma determinada área restringida. Entretanto, para outros, a concepção tradicional abrirá horizontes, infundindo uma superior segurança, com a condição de não confundir o jogo, como no caso daqueles “tradicionalistas” que colocaram a mão na Tradição só por uma espécie de condimento para a própria tradição particular reafirmada em todas suas limitações e em todo seu exclusivismo.



Notas:



* O texto a seguir escrito por Julius Evola, compõe um capítulo de uma de suas últimas obras “O Arco e a Clava” (1968). O pensador italiano procura explicar a ideia de Tradição desvinculando esta de qualquer forma de tradicionalismo. Para Evola, a Tradição possui um conteúdo meta-histórico e supra-temporal. O autor analisa ainda o chamado método tradicional e o papel das elites na transmissão do conhecimento tradicional.



1. Para Evola a ideia de Tradição é algo mais vasto e universal que o catolicismo. Em sua obra “Os homens e as ruínas” afirma: “Deve, pois permanecer firma a ideia de que ser tradicional e ser católico não é a mesma coisa. Não só isto, por mais que possa parecer paradoxal a alguns, quem é tradicional sendo só católico em sentido corrente e confessional, não é tradicional senão pela metade do caminho. Repetimos: o verdadeiro espírito tradicional é uma categoria muito mais vasta que todo que é simplesmente católico.”



2. Para Guénon, tudo o que é de ordem tradicional tem uma relação com algo que é de origem supra-humana. A Tradição possui uma origem divina e não se confunde com mero costume ou hábito.



3. Para o pensador italiano o Japão era até à II Guerra Mundial um exemplo claro de harmonia entre desenvolvimento técnico e manutenção do espírito tradicional.



4. Segundo Evola, em tempos primordiais, na “Idade de Ouro” não havia a distinção entre poder temporal e autoridade espiritual. O detentor do poder político era também uma autoridade espiritual, a figura da realeza sacerdotal exprime esta ideia.



5. Conceito criado por Frithjof Schuon.



6. Termo usado pela escolástica medieval. A intuição intelectual não se confunde com a intuição sensível e com a razão.



7. Esta ideia de Evola concorda com sua concepção tridimensional da história. Para este autor além das dimensões de superfície, que compreendem as causas, os factos e os dirigentes visíveis, o devir histórico possui também uma dimensão profunda, subterrânea em que agem forças e influências decisivas de origem não humana e que actuam de forma subtil.



8. Característico de todas as formas de tradicionalismos e fundamentalismos.

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