sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

Alexander Dugin: o artigo que não escrevi

Abordar o fascismo, não o lugar-comum que as pessoas imaginam, mas aquele que existiu, é profundamente incómodo. Por João Bernardo

No dia 29 de Agosto o Passa Palavra recebeu uma mensagem de um leitor.
«Prezado/a,
O ideólogo do Estado russo de Vladimir Putin, Aleksandr Dugin, está a caminho do Brasil. Ele palestrará na USP, UERJ, UFPB e em Curitiba.
Seria interessante e oportuno se alguém do ou próximo ao coletivo Passa Palavra, melhor informado do que eu sobre a teoria política de tal indivíduo, talvez já familiarizado caso seja de terras européias, publicasse uma abordagem (marxista libertária?) sobre seu pensamento, que é muitas vezes caracterizado como neofascista.
Fica a sugestão.
Saudações.»
E a seguir o leitor transcreveu a apresentação da palestra, tal como foi divulgada pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, UERJ.
«A Quarta Teoria Política
Palestra com o prof. Aleksandr Gelyevich Dugin
Dia 03 de setembro às 19h, o prof. Aleksandr Dugin, do Departamento de Sociologia e Relações Internacionais da Universidade de Moscou, estará presente na UERJ para dar uma palestra versando sobre os seguintes temas:
1. Traditionalism: The Tradition / Metaphysics; 2. Geopolitics: The Eurasianism / Moltipolarity; 3. Political Philosophy: The Fourth Political Theory / Global Revolutionary Alliance.
Aleksandr Dugin é um dos fundadores de uma das principais escolas contemporâneas de geopolítica, geralmente designada de “eurasianismo”. Mas Dugin não é somente um filósofo e cientista político, sua obra intelectual abarca setores muito diversos que vão da geopolítica, passando pelo estudo comparativo das religiões, a teologia (sendo ele um cristão ortodoxo), crítica literária e de autores como Heidegger, Carl Schmitt, Halford John Mackinder e a Escola Tradicionalista de Julius Evola, René Guénon, Titus Burckhardt, Rama Coomaraswamy, etc. O prof. Dugin sendo um dissidente do regime comunista (seu pai foi um oficial da KGB), fundou a Associação Arctogaya e o Centro de Estudos Metaestratégicos com a dissolução da URSS. Em 1988, juntamente com o seu amigo Geidar Dzhemal, filiou-se na organização nacionalista Pamyat. Auxiliou também na redacção do programa político do refundado Partido Comunista da Federação Russa (ex Partido Comunista da União Soviética) sob a jurisdição de Gennady Zyuganov, sendo o produto final um documento mais inclinado para o nacionalismo que para o marxismo. Convencido de que o Nacional-Bolchevismo necessitava de uma encarnação política própria Dugin convenceu o seu aliado Eduard Limonov do mesmo e criaram a Frente Nacional-Bolchevique em 1994, posteriormente Partido Nacional-Bolchevique. Nos anos 80 suas teses foram fortemente influencidas pela escola intelectual européia comumente chamada de “Nova Direita”, sendo seu principal representante o filósofo francês Alain de Benoist. Dugin também é o principal conselheiro político do Presidente russo Vladimir Putin. Seus interesses atuais giram em torno da Teoria do Mundo Multipolar e da filosofia de Martin Heidegger. O autor tem ainda textos escritos na área de economia sobre as idéias de Friedrich List, Schumpeter e Brodel, entre outros. Dugin é um dos principais teóricos do pensamento antiliberal em nossos dias, defensor da noção de “Grande Síntese”, que nada mais é que a síntese entre todas as correntes antiliberais, antimodernas, antiburguesas, antidemocráticas; o aspecto mais inovador desse ponto de vista é agrupar dentro dessa mesma categoria personalidades históricas tão díspares e contrastantes como Julius Evola e Marx, Carl Schmitt e Sorel, Heidegger e Guénon, Ernst Jünger e Henry Corbin, Nietzsche e Ivan Kireyevski, Che Guevara e Codreanu, Lenin e Mussolini, etc.
Organização:
Dndo. Rodolfo da Silva de Souza (UERJ)
Prof. Dr. Marco Antonio Casanova (UERJ)
Programa de Pós-Graduação em Filosofia
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
Universidade do Estado do Rio de Janeiro.»
Sucede que há dois meses e meio publiquei no Passa Palavra o artigo Ponto final, que é o que o título diz, um ponto final, a decisão de que é inútil escrever para este público. Mas a sugestão, quase um repto, enviada por aquele leitor seduziu-me e podia ter aberto uma excepção. Não é frequente abrir excepções às decisões que tomamos? Algumas parece que só servem para isso. Além do mais, toda a minha vida adulta me interessei pelo estudo do fascismo e nos últimos vinte anos tem sido este o meu principal tema de pesquisa. Posso dizer que estou habilitado a tratar da questão.
Mas logo me veio o desânimo. Várias vezes, aqui mesmo, no Passa Palavra, quando escrevi acerca do fascismo a reacção imediata dos leitores foi a de enviarem comentários acusando-me de ser ignorante. Não sucedeu uma vez ou duas, que pudessem ser consideradas anomalias, mas tratou-se de uma reacção frequente. É que o fascismo constitui um dos temas em que as ideias feitas menos correspondem à realidade.

Montagem fotográfica de John Heartfield
Por um lado, o fascismo foi derrotado militarmente, nalguns casos politicamente também, mas não foi derrotado ideologicamente. No plano da ideologia o que sucedeu foi que em todo o mundo as democracias capitalistas, depois de terem ganho a guerra, simplesmente proibiram a difusão dos livros fascistas, as editoras retiraram-nos dos catálogos, a generalidade das bibliotecas deixou de os ter à disposição ou relegou-os para a secção dos reservados e na sua esmagadora maioria os fascistas satisfizeram-se com esta situação, porque preferem passar despercebidos do que fazer proselitismo. Seria impensável que alguém escrevesse, por exemplo, sobre o marxismo sem ter lido Marx ou sobre o liberalismo sem ter lido Tocqueville, mas o fascismo é um tema sobre o qual parece que todos podem falar e escrever sem ter lido os autores fascistas. Há anos atrás, num debate acerca de um livro meu, numa sessão pública em Lisboa, uma das figuras mais expressivas do marxismo português, um homem que já morreu e por quem eu sempre tive uma grande consideração teórica, censurou-me por perder tempo a ler os políticos e os romancistas do fascismo já que, na sua opinião, o fascismo seria tão desprovido de ideologia como os gangsters. E se ninguém vai ler o Al Capone, para que iria eu ler Rosenberg ou Gentile ou Horia Sima? Assim o fascismo pôde ser coberto por uma tal camada de ignorância que quando alguém fala dele a reacção normal é acusarem-no de estar a falar de outra coisa, porque fala-se do fascismo que não é aquele que as pessoas imaginam. Foi o que me sucedeu muitas vezes no Passa Palavra e por causa da mensagem daquele leitor iria suceder-me uma vez mais? Obrigado, mas não.
Há outra coisa ainda. É que abordar o fascismo, não o lugar-comum que as pessoas imaginam que existiu, mas aquele que existiu mesmo, é profundamente incómodo. O fascismo não foi uma corrente política e ideológica com as margens bem demarcadas, como sucede com o conservadorismo, o liberalismo ou o marxismo, mas caracterizou-se por operar cruzamentos entre opostos. Se reduzirmos a política a uma linha, o fascismo situou-se na direita da direita, mas isto ajuda mais a confundir do que a esclarecer, porque o fascismo transportou alguns dos principais temas da esquerda para o interior da direita e transportou os principais temas da direita para o interior da esquerda. Foi esta operação que lhe conferiu a sua grande novidade e ao mesmo tempo o seu enorme perigo.
Como fica nisto tudo a esquerda, que gosta de se apresentar pura e imaculada? Como pode a esquerda admitir os cruzamentos e as convergências entre ela e o fascismo? E mais ainda no Brasil, onde essas circulações ideológicas atingiram um ponto extremo! Quando, numa série de artigos no Passa Palavra, muito de mansinho, chamei a atenção para a influência que as ideias de Manoilescu tiveram sobre as teses do desenvolvimentismo na esquerda brasileira, foi um ai jesus nos comentários. E iria eu, só porque um leitor amavelmente nos enviou uma mensagem, ser obrigado a ler mais uma série de comentários indignados?
É que as coisas com Alexander Dugin são piores ainda, porque no vasto leque do fascismo ele é um nacional-bolchevista. No sentido estrito do termo, o nacional-bolchevismo foi uma corrente surgida na Alemanha em Novembro de 1918 graças às duas principais figuras comunistas de Hamburgo, Heinrich Laufenberg, um tribuno, e Fritz Wolffheim, um teórico. E esta corrente surgiu na esquerda da esquerda, pois formou-se na vertente mais esquerdista do congresso fundador do Partido Comunista Alemão; e no 2º Congresso deste Partido, em Outubro de 1919, foram Laufenberg e Wolfheim os principais porta-vozes da ala esquerda. Em Abril do ano seguinte eles participaram no que é hoje considerada a génese oficial do conselhismo, a formação do Partido Comunista Operário Alemão, e o ascendente ideológico do grupo de Hamburgo revela-se pelo facto de o seu jornal ser o órgão da nova formação política. Assim, embora em Agosto de 1920 o Partido Comunista Operário Alemão tivesse excluído a organização regional de Hamburgo, o certo é que na sua formação teve um papel determinante o nacional-bolchevismo. Aqueles que gostam de considerar o conselhismo como o Santo dos Santos deviam meditar neste caso, que data da própria génese do conselhismo, mas em vez disso prevejo que enviem comentários a dizer que eu não sei o que é o conselhismo.

Karl Radek
Foi Karl Radek o primeiro a estigmatizar a orientação defendida por Laufenberg e Wolffheim, dando-lhe em Novembro de 1919 o nome por que ficou conhecida, nacional-bolchevismo, o que é irónico porque em Junho de 1923 seria o próprio Radek a defender o nacional-bolchevismo no seu discurso acerca de Leo Schlageter, «o viajante do nada». Mas o que ele propôs então foi uma versão de nacional-bolchevismo que em vez de estar remetida para a periferia da extrema-esquerda se situava no seu próprio centro, constituindo de então em diante a orientação oficial do Komintern e, nomeadamente, do Partido Comunista Alemão.
Ora, estes passos cruzados não são uma bizarria e inscrevem-se num paradoxo constitutivo do próprio marxismo. Numa série de artigos que dediquei no Passa Palavra ao marxismo e ao nacionalismo procurei mostrar como Marx e Engels, ao mesmo tempo que escreviam os bem conhecidos textos teóricos analisando o carácter internacional ou supranacional da economia capitalista e, portanto, da formação do proletariado, defendiam, em textos políticos muito menos conhecidos, uma orientação nacionalista caracterizada por um antieslavismo feroz. Sustentei nessa série de artigos que neste paradoxo dos fundadores do marxismo se radicam as posteriores confusões e circulações entre marxismo e nacionalismo, que tão catastróficas têm sido para a esquerda. O que eu fui dizer! Na verdade já o tinha dito noutro lugar vários anos antes, mas como se tratava de um livro com muitas páginas ninguém tinha dado conta da heresia. Hoje, se alguém na esquerda quiser defender teses escandalosas, que o faça no meio de um livro, porque a esquerda pouco lê livros, só artigos na internet ou duas linhas no Facebook. O problema foi eu ter dito aquilo em artigos, o que me valeu insultos tanto neste site como noutros. E, para não fugir à regra, chamaram-me ignorante e disseram que eu não conhecia nada da obra de Marx, o que foi muito divertido, porque era eu quem estava a citar textos que os leitores indignados desconheciam. E continuam a desconhecer, porque se encontram em antologias em inglês e em francês e a fluência em línguas estrangeiras não é uma das características da esquerda brasileira. Legitimam essa ignorância linguística classificando-a como aversão ao eurocentrismo. Como se o português fosse a língua dos tupis-guaranis! O que aquele leitor sugere agora, que se faça uma análise crítica do nacional-bolchevismo de Alexander Dugin, já eu tinha esboçado num nível mais básico nos artigos em que pretendi analisar as relações entre o marxismo e o nacionalismo, e com resultados nulos. Como habitualmente, gritaram alto para cobrir aquilo que não queriam ouvir, porque lhes é muito incómodo ouvir.

Getúlio Vargas
E é tanto mais incómodo quanto no Brasil a génese do comunismo se confunde com a génese do nacionalismo moderno. Com efeito, a circulação ideológica entre a esquerda e o fascismo é tão profunda no Brasil que quase se pode dizer que está inscrita no código genético daquelas correntes políticas. Tudo remonta ao tenentismo, e Luís Carlos Prestes foi um tão legítimo continuador do tenentismo como o foi Getúlio Vargas. Para mim, que nasci e fui educado sob o salazarismo, falar do regime de Getúlio como fascista é algo inteiramente óbvio. A influência do Estado Novo português sobre o Estado Novo brasileiro fazia parte das aulas de Direito Constitucional na Universidade de Lisboa. Mas uma vez que eu escrevi, rapidamente, só de passagem, que o getulismo foi um fascismo, caiu-me o céu em cima. A esquerda brasileira tem a estranha mania de considerar o Brasil como uma excepção no mundo, como se pudesse haver excepções do tamanho deste país! Não creio que tenha alguma utilidade falar aqui, uma vez mais, de nacional-bolchevismo.
O público de esquerda habitual, se já não quer ler análises sérias do fascismo, muito menos as quererá ler do nacional-bolchevismo, porque atingem o âmago, o profundíssimo nacionalismo da esquerda e da extrema-esquerda brasileiras. E pior ainda devendo mencionar René Guénon e Julius Evola, num país onde as camadas de rendimentos intermédios disputam com as suas congéneres dos Estados Unidos a palma das consultas a psicanalistas e onde Jung é estimado pela esquerda; num país onde os sindicatos, e os movimentos sociais depois deles, recorrem a rituais colectivos que encontram grandes afinidades com alguns aspectos do pensamento de René Guénon e de Evola. Encontram afinidades também com o pensamento de Georges Sorel, e a este respeito seria interessante recordar a obra de Henri De Man, um dos mais importantes teóricos da social-democracia no período entre as duas guerras mundiais, que chegou ao fascismo a partir de uma revisão soreliana do marxismo, enfatizando a noção do mito enquanto expressão e veículo de um anseio colectivo. Sem tirar nem pôr, é isto que nos é proposto agora nas místicas dos movimentos sociais, um universo de irracionalismo colectivo que tem Evola numa ponta e Sorel na outra. Imagino o que seriam os comentários se eu tivesse escrito esta frase.
Já que mencionei Sorel, convém saber que um dos primeiros ensaios do que se poderá considerar protofascismo foi a constituição do Cercle Proudhon (Associação Proudhon) em França, no final de 1911, um lugar de encontro e debate para os sindicalistas antiliberais e os nacionalistas preocupados com a questão social, cuja iniciativa se deveu, do lado de Sorel, ao seu discípulo Édouard Berth e, do lado do partido de extrema-direita Action Française, a Georges Valois. Quanto à figura emblemática de Proudhon, ela serve pelo menos para mostrar que as ambiguidades do socialismo e do nacionalismo não são um exclusivo do marxismo, porque essas ambiguidades não foram menores em Prodhon. Um dos hitlerianos de Paris, Lucien Rabatet, escreveu durante a segunda guerra mundial, num dos livros cimeiros do colaboracionismo, que «sem os judeus, teríamos feito entre nós, e com o mínimo de estragos, essa revolução do socialismo autoritário que se tornou a necessidade do nosso século e de que os velhos doutrinadores franceses, como Proudhon, têm a honra de ter sido os precursores». E assim eu, que com os artigos sobre marxismo e nacionalismo desencadeei a ira dos marxistas, exponho-me agora a suscitar a cólera dos anarquistas. E tudo isto para quê? Para explicar a um leitor amável que é inútil, hoje e para este público, fazer a crítica dos pressupostos do nacional-bolchevismo.
Ainda a propósito de Sorel, é curioso que a principal repercussão das suas ideias não tivesse ocorrido em França mas na Itália, onde ele esteve na origem directa do sindicalismo-revolucionário. Ora, juntamente com os futuristas e os membros das tropas de elite, os sindicalistas-revolucionários foram uma das três correntes constitutivas do fascismo italiano. Não o recordo aqui por acaso. É que no Brasil, por razões que se prendem com a origem do Partido dos Trabalhadores, PT, a figura de Gramsci goza de uma enorme celebridade, muito maior do que na Europa, onde só é conhecida, ou pouco conhecida, em meios universitários. O PT pretendeu conjugar a forma autoritária de partido com a forma democrática dos movimentos de base, e para isto as teorias de Gramsci pareceram-lhe oferecer um quadro útil. O PT podia ter optado com igual proveito por Otto Bauer, mas foi Gramsci o escolhido.

O elegante ditador de Fiume
Um episódio fascinante é aquele em que Gramsci, na Primavera de 1921, passados dois ou três meses apenas sobre a fundação do Partido Comunista, procurou obter a colaboração de Gabriele d’Annunzio para a formação de um exército vermelho, numa guerra civil que se previa próxima. Entre muitas outras coisas, D’Annunzio fora desde Setembro de 1919 até Dezembro de 1920 o ditador de Fiume, onde implantou um regime verdadeiramente fascista, rodeado de sindicalistas-revolucionários, os tais discípulos italianos de Sorel, e nessa época Mussolini teve grande dificuldade em disputar a D’Annunzio a primazia na extrema-direita radical. Foi a esta figura que Gramsci pediu, ou ofereceu, colaboração. A primeira menção que encontrei a uma tão inesperada tentativa de convergência política foi na Storia del Fascismo de Enzo Santarelli, vi-a mencionada também num artigo de Sergio Caprioglio na Rivista Storica del Socialismo em 1962, mas ambos remetiam para um artigo de Nino Daniele, «Fiume Bifronte», publicado em 1933 numa obscura revista intitulada I Quaderni della Libertá. Seguidor de D’Annunzio, Daniele manteve-se na vertente mais radical do fascismo, o que o levou a entrar em divergência com o regime de Mussolini e a exilar-se no Brasil, publicando aqui, numa edição precária, o relato das insistentes tentativas de Gramsci para ser admitido à presença de D’Annunzio. Este desejo ficou frustrado porque, como D’Annunzio lhe mandou dizer, «tenho telhados de vidro», mas isto não impediu que Gramsci defendesse a conveniência daquela aliança em artigos publicados no seu jornal L’Ordine Nuovo. Esta convergência política inscreveu-se no quadro do nacional-bolchevismo.
Pois bem, o artigo de Nino Daniele está em São Paulo, guardado numa biblioteca, talvez exista noutras, está em Paris X-Nanterre microfilmado na BDIC, eu tratei do assunto pelo menos num livro que alguns brasileiros leram, não me recordo se o abordei em artigos também, e apesar de todos os dias se fazerem dissertações e teses sobre Gramsci isto e Gramsci aquilo, estes primórdios de nacional-bolchevismo continuam — tanto quanto sei — a não interessar ninguém. E quer o amável leitor que agora as pessoas abram os olhos para aquilo que durante anos a fio se esforçaram por não ver?

Eduard Limonov
Na área do nacional-bolchevismo russo contemporâneo o nome inevitável é o de Limonov. Li há vários anos um bom romance dele, His Butler’s Story, escrito e publicado durante o exílio nos Estados Unidos, que me permitiu resolver um problema intrigante. Numa certa época da minha vida li muito Bukowski. Não gosto dos romances dele, que me parecem forçados, mas acho os poemas modelares, e intrigava-me que Bukowski, um anarco-individualista que eu situava na esquerda, se sentisse tão próximo de Céline, não só do estilo de Céline mas de algumas das ideias também — aliás, este é um dos casos em que conteúdo e forma são indissociáveis. Ora, o fascista Céline foi um partidário extremo das teses de Hitler e um dos grandes nomes do anti-semitismo em França. O paradoxo da afinidade que Bukowski sentia por Céline foi aquele romance de Limonov que mo resolveu. Leiam His Butler’s Story e em seguida vejam o filme de Joseph Losey, The Servant, que podemos considerar duas versões opostas do mesmo tema, e compreenderão o que é o fascismo enquanto movimento de circulação das elites. Também aqui, nesta encruzilhada de temas estéticos, é de nacional-bolchevismo que se trata. Mas será que o amável leitor que enviou a mensagem pensa que estas considerações sobre Bukowski e Céline contribuirão para esclarecer alguém que goste de Bukowski ou goste de Céline? Um foi um bom poeta e o outro foi um dos mais geniais romancistas do século passado, mas que se leiam com os olhos abertos.
É uma já longa sucessão de tentativas falhadas, sem nunca conseguir despertar a inquietação dos leitores. Por isso tomei a firme decisão de não escrever este artigo.
FONTE - http://passapalavra.info/?p=63916

Adendo - comentário de João Bernardo postado a uma indagação minha:

  • João Bernardo em 10 de janeiro de 2013 12:20 
    Júlio Bueno,
    Concordo com a perspectiva que você indica, e acho que é em Solzhenitsyn que encontramos a ponte entre o velho populismo russo e o actual nacional-bolchevismo. Será interessante reler à luz dos problemas contemporâneos as críticas feitas por Plekhanov aos populistas. Acho que isso talvez ajude a abrir horizontes novos.
    Mas surge aqui uma dificuldade, porque o fascismo russo costuma ficar excluído dos estudos comparativos — eu próprio, no meu livro sobre o assunto, o releguei para duas ou três notas de rodapé — pela simples razão de que o profundo antieslavismo dos nacionais-socialistas impediu que os fascistas russos se juntassem aos seus congéneres europeus. E como uma boa parte da extrema-direita russa se havia refugiado na Manchúria depois da guerra civil, os fascistas russos acabaram por ficar sob a protecção, nem sempre entusiástica, dos militares fascistas japoneses.
    Sobre o fascismo russo no período entre 1917 e 1945 sugiro três estudos: C. Andreyev, «Soviet Exiles at War», em I. C. B. Dear e M. R. D. Foot (orgs.) The Oxford Companion to the Second World War, Oxford e Nova Iorque: Oxford University Press, 1995; Maurice Bardèche, François Duprat, François Solchaga, Henri Guiraud e Lyder L. Unstad, «Les Fascismes Inconnus», Défense de l’Occident, 1969, XVII, nº 81; Erwin Oberländer, «Il Partito Fascista Panrusso», Dialoghi del XX, 1967, nº 1.
    Houve um livro que me ajudou a compreender muito do que se passa hoje na antiga esfera soviética: Valdimir Tismaneanu, Fantasies of Salvation. Democracy, Nationalism, and Myth in Post-Communist Europe, Princeton, Nova Jersey: Princeton University Press, 1998.
    Quanto ao caso específico de Dugin, vi que os discípulos de Julius Evola estiveram activos no acolhimento que lhe foi dado no Brasil, o que nos impede de esquecer a dimensão religiosa do problema.


  • Nenhum comentário:

    Postar um comentário