quarta-feira, 20 de junho de 2012

São Paulo, por Stefan Zweig

São Paulo em " Brasil - o país do futuro" de Stefan Zweig

Para apresentar a cidade do Rio de Janeiro teria eu propriamente que ser pintor e para descrever São Paulo precisaria ser estatístico ou economista. Teria que reunir números e compará-los, copiar tabelas e tentar tornar compreensível por palavras o crescimento, pois não são o passado e o presente de São Paulo que o tornam tão fascinante, mas sim o seu crescimento, desenvolvimento e velocidade de transformação, por assim dizer, vistos numa película cinematográfica feita em câmara lenta. São Paulo não fornece um quadro, porque constantemente se está ampliando e sua transformação se opera com muita rapidez. A melhor maneira de mostrá-lo seria por meio duma película duma película que de hora para hora se fosse desenrolando mais depressa. Nenhuma outra cidade do Brasil e poucas do mundo inteiro podem comparar-se em impetuosidade de desenvolvimento a essa, que é a mais ambiciosa e mais dinâmica do país.
     Vejamos, pois, alguns números, apenas a fim de termos uma idéia desse desenvolvimento. Nos meados do século dezesseis edificam os jesuítas algumas choupanas e casas em redor do seu colégio; os séculos dezessete e dezoito ainda vêem à margem do rio Tietê uma cidadezinha sem importância, que é mais um quartel general ou acampamento do que uma residência permanente dos bandos errantes, dos paulistas, que partindo dali percorrem, nas célebres e mal afamadas entradas, grandes regiões do país à procura de presas, sem, todavia, realmente enriquecerem a si e a cidade com sua captura de índios. Ainda em 1872, São Paulo, com seus 26.000 habitantes e suas ruas estreitas e pobres, ocupa o décimo lugar entre as cidades do Brasil, é muito inferior ao Rio, que tem 275.000, à Bahia, que conta 129.000 habitantes, é inferior mesmo a cidades cujos nomes o estrangeiro nem conhece, como sejam Niterói, que tem 42.000, e Cuiabá, que conta 36.000 almas. Mas é o café, o grande rei, o primeiro que manda suas tropas de trabalho para São Paulo, e a ascensão, uma vez iniciada, assume proporções fantásticas. O número de habitantes em 1890 já é de 69.000, e no decênio seguinte ascende a 239.000. No ano de 1920 a população é de 579.000, por volta de 1934 é superior a um milhão e hoje já está acima de um milhão e meio, sem que se tenha podido verificar o menor sinal de diminuição da velocidade do crescimento. Em 1910 foram construídas 3.200 casas, em 1938 mais de 8.000, número que por si só de nenhum modo permite perceber inteiramente a proporção do crescimento, pois entre os novos prédios há muitos arranha-céus, os quais correspondem a dúzias das casas de outrora, pouco espaçosas e de um andar. O coeficiente do aumento exprime-se melhor pela importância dos aluguéis, que a partir de 1910 subiu de 43.173 contos a uma quantia quase vinte vezes maior, a cerca de 800.000 contos. Constroem-se atualmente ao menos quatro casas por hora nessa cidade, que, desde a época em que a indústria acabou com a soberania do café, possui mais de 4.500 fábricas e, de fato, domina mais ou menos toda a vida mercantil do país.
     Que causas determinaram tão fantástico crescimento e ainda hoje o favorecem? Em essência, são elas as mesmas causas geográficas e climáticas que há quatrocentos anos fizeram Nóbrega escolher o mesmo local, como o mais apropriado do Brasil para uma expansão eficiente e rápida. Um dos melhores portos da América do Sul, o de Santos, está perto da cidade de São Paulo, o planalto facilita as comunicações em todas as direções, os grandes cursos de água, o Paraná e o Rio da Prata, são facilmente atingíveis, o solo, a chamada “terra roxa”, é fértil e próprio para toda espécie de lavoura, a energia hidro-elétrica existe em abundância e por preço módico. Tudo isso já é suficiente para explicar o crescimento rápido dentro dum país que constantemente se potencia a si próprio. Mas o fator decisivo foi desde o começo o clima, que, apesar de saturado de sol, nesse planalto de oitocentos metros de altitude, nunca exerce sobre a atividade humana a mesma ação debilitadora que exerce nas zonas trópicas e nas cidades marítimas. Já no século dezessete se mostrou que o paulista se desenvolvia com um espírito mais enérgico, mais ativo do que o faziam os demais brasileiros. Os paulistas, os verdadeiros portadores da energia nacional, “semper novarum rerum cupidi”, descobriram e conquistaram a região, e esse gosto por empreendimentos ousados e esse desejo de progredir e de expandir-se transmitiu-se, nos séculos posteriores, ao comércio e à indústria. O verdadeiro impulso para o progresso foi trazido pelos imigrantes nos últimos decênios do século dezenove. Instintivamente procura o imigrante condições de vida e clima que correspondam aos que tinha em sua pátria; os italianos, que constituem a maioria dos imigrantes, encontram em São Paulo o clima do norte e do centro da Itália e o sol do sul da Europa. Eles não têm que se adaptar; trazem consigo toda sua energia e ainda a fortalecem no Brasil. O imigrante tem sempre maior sofreguidão de progredir do que o filho do país, não possui bens de herança dos quais possa viver sem trabalho, e tem que adquirir tudo pelo labor. Isso aumenta a sua atividade, isso faz com que dispenda maior energia. E essa energia e esse espírito de empreendimento estimulam os filhos do país; justamente os brasileiros mais dispostos para o trabalho e mais ambiciosos se estabelecem em São Paulo, onde encontram esses trabalhadores mais civilizados, mais bem preparados e mais operosos. O capital, por sua vez, aflui em massa para o espírito de empreendimento, uma roda engrena na outra, e assim a máquina do progresso de ano para ano trabalha com maior velocidade. Quatro quintos do total produzido hoje de modo organizado e industrialmente no Brasil têm origem em São Paulo. Esse Estado, mais do que qualquer outro da União, mantém a economia nacional em equilíbrio; é, de certo modo, o centro muscular do Brasil, o órgão da sua força.
     O músculo é, sem dúvida, no organismo um dos elementos mais necessários, mas não é um órgão bonito. Quem espera ter da cidade de São Paulo impressões estéticas, sentimentais ou pitorescas, fique sabendo que São Paulo é uma cidade que cresce para o futuro, e ela o faz tão rápida e sofregamente que não presta muita atenção ao seu presente e ainda menos ao seu passado. Quem procura algo de histórico em São Paulo, encontra-lo-á tão pouco quanto em Houston ou em uma das outras cidades norte-americanas do petróleo. Mesmo o próprio colégio do fundador da cidade, edifício que deveria ter sido conservado como um panteão, há muito foi demolido para em seu lugar ser levantado um prédio qualquer. Do seu século dezessete, do seu século dezoito São Paulo quase nada conservou, e quem quiser ver uma morada paulista do século dezenove, não perca tempo, pois nessa cidade se arrasa com rapidez quase assustadora tudo o que ainda lembra o dia de ontem, o de anteontem. As vezes tem o visitante a impressão de não estar numa cidade, mas sim num enorme local de construção. A cidade vai-se estendendo para todos os lados, para leste, oeste, norte e sul, e em toda a parte se constrói; no centro, na parte comercial, transformam-se as ruas, umas após outras, e quem há cinco anos esteve em São Paulo, voltando ali, sente-se desorientado como se estivesse numa cidade a que chega pela primeira vez. Por toda a parte tudo se torna demasiado estreito, demasiado baixo, demasiado pequeno; as ruas exigem imperativamente maior largura e obrigam a se edificarem prédios altos, constroem-se viadutos, por toda a parte tudo se transforma sofregamente e com certo egoísmo. Assim se tem em São Paulo ainda hoje a imagem viva do desenvolvimento e da transformação duma verdadeira cidade de colonos e duma cidade de imigrantes. Essas cidades de imigrantes não cresceram, como as cidades da Europa, lenta e concentricamente, mas sim rapidamente e a esmo. Um imigrante qualquer ganhara um pouco de dinheiro. Como não houvesse casas de aluguel, construiu às pressas (o terreno não custava muito e a mão de obra era barata) em um lugar qualquer uma casa, uma dessas casinhas sem arte que aqui se encontram por toda a parte. Cada uma delas é composta de uma loja e de um primeiro pavimento com dois ou três quartos. Se o proprietário era um italiano, pintava a fachada com cores vivas, de amarelo, vermelho ou azul. Uma casa ia-se juntando a outra, formava-se uma rua e mais uma e mais outra, e pouco a pouco se tinha uma cidade. Nenhum imigrante tinha certeza de que moraria sempre nessa casa; talvez se mudasse para outra cidade, talvez com suas economias regressasse para sua terra, talvez enriquecesse e então construísse uma casa mais bonita, uma daquelas vilas de luxo sobrecarregadas de ornatos em falso barroco ou em estilo oriental, que há trinta anos aqui no Brasil eram consideradas elegantes. A idéia de estabilidade, de fixidez e da completa incorporação do indivíduo como cidadão no Estado não podia deixar de faltar inteiramente a esses imigrantes ainda nômades, e por isso essas cidades, no que concerne à arquitetônica, só podiam ser provisórias, só podiam ser um casual ajuntamento de muitas moradas, alguma coisa que foi crescendo desordenada e irregularmente, alguma coisa que tão facilmente se resolve demolir como facilmente se resolve construir. Uma casa de vinte anos aqui é considerada antiquada como entre nós, na Europa, uma de duzentos anos, e é demolida com a mesma pressa com que foi edificada.
     Só desde que a indústria, o comércio e a riqueza se desenvolveram tão rapidamente parece ter São Paulo descoberto que há muito é uma cidade grande e que tem o dever de apresentar-se como tal. De repente em São Paulo tudo se tornou demasiado acanhado, demasiado pequeno, as ruas, as praças, as igrejas, os edifícios públicos, os edifícios dos bancos, os hospitais, e com vontade resoluta a cidade então se entregou ao trabalho de transformar-se. Quem hoje chega a São Paulo, observa um dos fatos mais interessantes. Pode ver com que energia nessa cidade se operam transformações e as coisas provisórias são substituídas por definitivas. Por toda a parte se trabalha, constroem-se viadutos, fazem-se jardins, rasgam-se avenidas no centro, da cidade, levantam-se grandes edifícios públicos, e tudo isso de acordo com planos, planos que, conforme me disseram, dada a rapidez vertiginosa de crescimento da cidade, durante a sua execução já se mostram insuficientes. Superando uns aos outros em altura, erguem-se no centro os arranha-céus, a fim de solucionarem o problema do espaço, e ao mesmo tempo nos outeiros os bairros residenciais se vão estendendo em círculos cada vez maiores. E também no ponto de vista etnográfico a cidade se modifica completamente. Ao passo que outrora ela se dividia de acordo com as nacionalidades dos imigrantes em um bairro italiano (São Paulo é uma das maiores cidades italianas do mundo), um armênio, um sírio, um japonês e um alemão, tudo isso agora se funde, e a cidade segundo aspectos meramente representativos se distingue numa zona central com formas de arquitetura acentuadamente norte-americanas e numa cidade de residências e jardins, situada na periferia, ambas capazes de, em alguns anos ou decênios, se tornarem belas num sentido novo. Já agora, se do alto de um dos arranha-céus lançamos um olhar sobre a extensa área levemente ondulada, temos muitas vistas aprazíveis. Mas o principal em São Paulo, nessa cidade tipicamente progressista, é o que está surgindo e não o que já está concluído; mais intenso que mesmo nos Estados Unidos da América do Norte vi o fenômeno de uma cidade que, por assim dizer, se remodela completamente e toma aspecto inteiramente novo. Coisa semelhante na América do Sul só vi em Montevidéu. Se queremos, pois, persistir na idéia de beleza, não podemos dizer que São Paulo é uma beleza presente, mas sim futura, uma beleza não tão visível quanto energética e dinâmica, uma beleza de amanhã, a qual, pelo que vemos hoje, sentimos que, precisamente agora, surge com sofreguidão e impetuosidade.
     É ainda o trabalho que caracteriza essa cidade. São Paulo não é cidade para os que querem gozar a vida, nem cidade preparada para ostentação: tem poucos passeios, poucas paisagens e poucos locais de diversões, e nas ruas vemos quase só homens, homens apressados, pressurosos, em atividade. Quem não está trabalhando ou tratando de negócios, após um dia de permanência em São Paulo, já não sabe como passar o tempo. Nessa cidade o dia tem o duplo do número de horas e a hora o duplo do número de minutos que têm aquele e esta no Rio, porque todas as horas são completamente cheias de atividade. Em São Paulo há tudo o que é novo, tudo o que é moderno, uma boa indústria manual e casas de negócio de luxo muito seletas. Mas pergunto a mim mesmo: quem nessa cidade tem tempo para gastar em luxo, em gozos, ao invés de utilizá-lo para obter lucros? Sem querer, lembro-me de Liverpool e de Manchester, dessas cidades essencialmente laboriosas, e, na realidade São Paulo está para o Rio como Milão para Roma, como Barcelona para Madrid. Milão e Barcelona, que não são capitais, sedes do governo e depositárias das obras de arte do país, também são superiores a Roma e a Madrid em energia ativa. O Estado de São Paulo sozinho, graças ao clima menos quente, que não diminui a atividade dos imigrantes europeus, tem mais indústria e comércio do que todo o resto do país
     São Paulo é mais moderno, mais progressista que as outras cidades do Brasil e, por isso, mais parecido com as cidades norte-americanas e européias pela sua organização intensiva. São Paulo nada tem da maravilhosa amenidade do Rio, dessa atmosfera que constantemente seduz à contemplação e ao belo ócio; a harmonia musical que paira sobre o Rio e toda a baia de Guanabara, é em São Paulo substituída por um ritmo, um ritmo célere, intenso, como a pulsação cardíaca dum corredor que corre e corre cada vez mais e se inebria com a sua própria velocidade. O que a São Paulo ainda falta em beleza é compensado por energia, que aqui nessas zonas tropicais se torna muito mais surpreendente e valiosa, e dá-se um fato que ainda é mais importante: essa cidade sabe que ainda tem que conseguir sua forma, e, como é animada de uma grande rivalidade em relação ao Rio, de uma vontade de não parecer inferior a este, menos artística do que este, podemos esperar que ela nos próximos anos nos proporcione toda espécie de surpresas.
     São Paulo atualmente ainda não possui muitas coisas dignas de serem vistas, e as três que possui, têm em sua grandiosidade um ressaibo pouco agradável. Existe nessa cidade o Museu do Ipiranga, que representa da maneira mais excelente e por meio duma exposição bem concebida todas as variedades da fauna e civilização brasileira. Mas o que senti ao percorrer as salas desse museu foi mais um desejo do que uma satisfação, pois eu preferia ver esses numerosos beija-flores e papagaios de diversas cores em seu meio, na natureza, livres, em vez de empalhados, e sabia que a algumas horas de distância desse museu já começa a mata e, enquanto ainda estava diante das vitrinas, sonhava com essas regiões fantásticas. Tudo que é exótico, logo que é posto em exposição e esquematizado, cessa de parecê-lo; torna-se imediatamente árido como um assunto de ensino, como uma categoria rígida, e por isso senti um pouco (contra a minha razão, que admira um museu desses e sabe avaliar o trabalho que ele representa) que no meio duma natureza tão impetuosa e luxuriante, a natureza aprisionada é um absurdo. Um desses macaquinhos interessantes, saltando livremente de uma árvore para outra, certamente me entusiasmaria como uma mercê da natureza, mas cem exemplares de macacos empalhados, enfileirados e expostos junto duma parede despertam apenas curiosidade técnica. Já os jardins zoológicos não dão completa impressão de realidade natural, e, muito menos o fazem os museus, mesmo quando eles, como esse de São Paulo, são dirigidos com extremo zelo e organizados para constituírem um todo grandioso.
     Tudo o que está preso contrista — e por isso também não deixei de sentir o coração oprimido quando vi a outra coisa digna de ser vista, a Penitenciária, o célebre presídio de São Paulo, estabelecimento modelar que honra muito os seus diretores, a cidade e o Estado. Nessa penitenciária o problema do estabelecimento penal, problema que no ponto de vista moral nunca pode ser inteiramente resolvido, é encarado no sentido mais humano, e a nação que não adota a pena de morte, esforçou-se por tratar os seus criminosos de acordo com os princípios mais razoáveis e mais modernos. Nessa penitenciária a humanidade no tratamento dos correcionais não é abolida à semelhança do que se faz em outros países como um atraso, e sim conscientemente desenvolvida e promovida de acordo com a idéia de que o preso deve realizar o trabalho que é mais apropriado para ele, e de que o estabelecimento inteiro deve constituir de certo modo uma comunidade autárquica, em que tudo é feito pelos penitenciários. Vemos nesse estabelecimento, que é grande, muito asseado e construído de acordo com os preceitos da higiene, todo o serviço ser realizado quase exclusivamente pelos presos; eles fazem o pão, manipulam os medicamentos, trabalham no serviço das clínicas e das enfermarias, plantam as verduras e lavam a roupa; quase nunca há necessidade de recorrer a alguém estranho ao estabelecimento. Todo pendor para uma atividade artística é favorecido pelos dirigentes, o estabelecimento tem uma orquestra e vários penitenciários aprendem a pintar e a desenhar. E, assim, num país que nas zonas mais dificilmente acessíveis ainda conta um número bastante grande de analfabetos, o presídio dá ao indivíduo o ensejo de aprender o que deveria ter aprendido na escola. Não se pode imaginar nada mais modelar do que esse estabelecimento, que por si já poderia corrigir a pretensão européia que julga serem as instituições da Europa as mais aperfeiçoadas do mundo. Apesar da perfeição dessa penitenciária, respiro aliviado logo que afinal a última das pesadas portas de ferro que transpus, se fecha atrás de mim; novamente respiro liberdade e vejo pessoas que dela gozam.
     Com semelhante desafogo deixo também o Instituto Butantan, embora nele haja visto coisas grandiosas e aprendido coisas de importância. O que ali atrai a curiosidade do público — de nada gosta mais a humanidade do que de ver o perigo sem estar exposto a ele — pouco me interessou, a saber, como se tiram ali as serpentes venenosas de seus abrigos, como se agarram as mesmas e se lhes extrai o veneno. Isso já eu vira, havia anos, nas Índias, e sempre me causa horror ver o homem, à custa da impossibilidade de defender-se um animal subjugado, dar um espetáculo ou uma diversão. O Instituto Butantan há muito tempo estendeu a sua atividade além do seu objetivo inicial, o de estudar as serpentes e preparar soros contra os venenos desses animais; nos últimos anos desenvolveu-se para constituir um grande instituto de pesquisas, no qual trabalham proeminentes especialistas com os mais modernos aparelhos. Numa hora em que ali me foram explicadas as diversas tentativas de transplantações e de análises químicas, aprendi mais do que durante anos, em livros; para nós leigos a demonstração objetiva é o único meio de nos serem apresentados de modo mais compreensível os problemas abstratos. E, porque justamente o visível, o palpável, é o que mais me excita a fantasia, nada em Butantan me impressionou tanto quanto um frasco de tamanho médio que continha pequenos cristais esbranquiçados; o veneno de oitenta mil serpentes, que é conservado sob forma concentrada e cristalina nesse frasco, é o mais terrível de todos. Cada um desses cristaizinhos, apenas visíveis e que poderiam desaparecer inteiramente debaixo de uma unha, pode com facilidade matar num segundo um homem. Mil vezes mais do que nas maiores granadas está condensada nesse frasco precioso e terrível a aniquilação, um milagre maior do que o dos célebres contos “As mil e uma noites” nunca vira e tivera eu nas mãos a morte em forma tão concentrada como no instante que segurei esse frasco frio e frágil. Esse fato incompreensível que é a destruição possível de um ente humano, com todas as suas idéias e toda a sua experiência, em um segundo, a parada súbita dum coração e de todos os músculos, só porque um cristalzinho muito menor do que um grão de sal lhe penetra no organismo, e o de ver essa possibilidade — já incompreensível em se tratando de um único ser — multiplicada por cem mil, tinham algo de comovente e, ao mesmo tempo, de grandioso. Todos os aparelhos desse laboratório de repente se tornaram para mim forças que arrancam da natureza o que há de mais perigoso, para em outro sentido, num sentido fecundo, servir a ela própria, e com respeito olhei, de súbito, para essa casa que repousa solitária no meio da vegetação dum outeiro, essa casa cercada pela natureza e que poderosamente domina a natureza, graças ao infatigável espírito humano.

Fonte: http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/paisdofuturo.html#18

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