sábado, 9 de outubro de 2010

Nacionalismo lingüístico

O fenômeno da globalização cria problemas lingüísticos, uma vez que é a própria mistura e difusão das línguas, descritas como uma punição bíblica pela arrogância dos construtores de Babel, o que enfrenta agora a Humanidade, consciente de sua unidade planetária. O processo comporta, conseqüentemente, a procura de uma língua comum, uma língua franca internacional que permita o diálogo entre grupos étnicos diversos. Na Ásia Oriental, esse esforço de superação da diversidade verbal está sendo realizado, há 2 mil anos, pela escrita ideográfica chinesa. No Ocidente, primeiro o grego depois o latim serviram de traço de união. O prestígio político e cultural da França nos séculos 17 a 19 elevou a língua de Racine a essa eminência. O crescimento do poder britânico no século 19 e do americano no século 20 forçou, no entanto, a substituição progressiva do francês pelo inglês. Notai que, além de reflexo do poder anglo-saxônico, se vale o idioma inglês da vantagem de ser gramaticalmente simples, rico no vocabulário e etimologicamente complexo, mergulhando raízes no celta, germânico, escandinavo, grego e, através do francês, em 50% no próprio latim.

Contrariando, porém, a tendência para a universalização lingüística, o nacionalismo tem reagido com vigor, mercê da tendência dos governos de impor seus caprichos na onda das malfadadas ideologias que nos maltratam. Em alguns casos, podemos justificar o processo. Um exemplo extraordinário foi a iniciativa dos sionistas de reviver o hebraico que, língua morta por mais de 2 mil anos, serviu de elemento de agregação em Israel de imigrantes das mais variadas origens. O ugro-finês e o gaélico constituem dois outros exemplos - tentativas, no primeiro caso, de fortalecer a nacionalidade finlandesa contra suas vizinhas, russa e sueca; e, no segundo, pelos ressentimentos dos católicos irlandeses contra os ingleses. Outro caso curioso é o turco moderno. Kemal Atatürk tentou purificar seu vocabulário de termos árabes e persas, ao mesmo tempo que adotava o alfabeto latino para fortalecer o Estado leigo contra o fundamentalismo islâmico.

Em nosso país, tem o nacionalismo lingüístico oferecido exemplos ridículos da intervenção extemporânea e arbitrária do Estado. Chegou-se a pensar na criação de uma "língua brasileira". Sinto, até hoje, dificuldades na ortografia, porque educado numa grafia que, periodicamente, é mexida e afetada pelos caprichos dos governantes e seus gurus intelectuais de meia-tigela. A desordem e a confusão criadas são inimagináveis, agravando a ignorância de uma população semi-analfabeta. Um pequeno exemplo típico: moro em Brasília no bairro da Parkway, nome que lhe foi concedido pela Novacap exatamente no momento em que as letras k, y e w eram oficialmente expurgadas do alfabeto "brasileiro".

Os nacionalistas se queixam hoje da invasão de termos ingleses como resultado da pressão "imperialista" de interesses comerciais e respectivo marketing, agora agravada pela informática. Esquecem que há séculos a velha língua lusitana tem sido afetada e enriquecida por vocábulos de outras procedências. É inevitável. Pois não possuímos milhares de neologismos científicos e tecnológicos, de origem grega? Milhares de termos árabes e mouriscos? Hebraicos (amém, hosana, aleluia)? Indianos (açúcar)? Persas (pijama, paraíso)? Japoneses (quimono, bonsai)? Astecas (chocolate, cacau)?

Quéchua (chácara)? Italianos (ciao e centenas de termos musicais)? São tantos que encheriam várias páginas deste jornal. Alguns até divertidos:

flertar vem do velho francês fleureter que passou para o inglês flirt, de onde o importamos. No Sul, encontramos de origem alemã o "pequerrucho" (o dedal, fingerhut) e o "serigote" (muito bem, sehrgut). Certo, poderíamos "deletar" do "ordinador" todas essas palavras, mas a verdade é que é a língua, do mesmo modo como a economia de mercado, o resultado de uma "Ordem Espontânea" que não depende, como postula Hayek, de decisão deliberada de nossa parte, razão pela qual prefiro download o non-sense dos botocudos em favor da Língua Geral, deixando correr a Arca de Noé ao sabor dos ventos de mudança...

J. O. de Meira Penna é embaixador, escritor e presidente do Instituto Liberal de Brasília

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