sábado, 19 de fevereiro de 2011

Sinfonia Paulista: Uma visão da História de São Paulo

Muitíssimo interessante o artigo. Leitura especial para paulistas e sobretudo para brasileiros que tem ódio à São Paulo e verdadeira síndrome de coitadismo para conosco.
Odilon Nogueira de Matos – Sócio correspondente do IHGSP

Conferência proferida na sessão solene do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo no dia 25 de janeiro de 2003.

Em duas notas que há pouco tive oportunidade de publicar em nossa imprensa periódica, abordei assuntos que podem servir de prefácio à conferência que ora pretendo pronunciar. A primeira referia-se a assunto que sempre me preocupou, qual seja, o pouco interesse que se nota com relação à História de São Paulo, num contraste sensível com relação ao que se nota em diversos outros Estados brasileiros. Existem, não há dúvida, excelentes obras especializadas de alta erudição abordando temas isolados da história paulista. Quanto a isto não há a menor dúvida. Numerosos livros, quase todos resultantes de teses universitárias, enriquecem a bibliografia histórica paulista. Mas, não são obras que cheguem ao público. O que se lamenta é a falta de obras de síntese que mostrem aos interessados, mas não especialistas, nossa evolução histórica, como existem em outros Estados. Entre alguém em uma livraria e pergunte por uma “História de São Paulo” e ouvirá a já clássica resposta: “Não existe...” E, no entanto, já existiram em outros tempos. Cito apenas duas de meu conhecimento: as de Tancredo do Amaral e de Rocha Pombo, ambas publicadas no início do século passado. Parece-me significativo observar que essas duas “Histórias de São Paulo” traziam, na capa, a indicação: “Adotada oficialmente nas escolas públicas do Estado”. Quer dizer: já se estudou, até nos grupos escolares, a história de nossa terra. E por que não se estuda hoje?

O segundo artigo cuidava de outro tema, igualmente significativo: a presença paulista na História do Brasil. Este, significativamente, servirá para dar o “tom” à “visão da História de São Paulo” que pretendo apresentar nesta minha fala. A propósito, recordo a conversa que tive, há muitos anos, com um colega de outro Estado, justamente sobre o pouco interesse que se nota com relação à história paulista. Depois das minhas lamúrias, perguntou-me ele: “Para que vocês, paulistas, querem estudar a História de São Paulo se ela se confunde com a própria História do Brasil?” E para fundamentar-se, acrescentou: “Não há região do Brasil, do Norte ao Sul, que, historicamente não esteja vinculada a São Paulo”.

O que ouvi, meus caros ouvintes, encheu-me de orgulho, mas encheu-me muito mais de responsabilidade. E passei a alimentar a esperança que, infelizmente, ainda não se concretizou, de esboçar um largo painel da história paulista, desde a chegada de Martim Afonso de Souza, em 1532, até os dias atuais. Debruçando-me sobre este painel imaginário e sobre ele meditando, escolhi alguns “momentos”, não só da História, mas do Espírito e da Alma de São Paulo, para vos apresentar nesta sessão.

A História de São Paulo, eu a sinto no íntimo de meu ser, como se um ressoar de vozes e de harmonias fizesse dela uma grande sinfonia, na qual os movimentos habituais seriam substituídos por símbolos imperecíveis, mas, para cuja definição, usarei os próprios termos musicais.
Primeiro Movimento: Allegro Moderato

Em seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, em maio de 1933, discurso que é uma das obras primas da oratória brasileira, o grande jurista e também historiador, que foi Alcântara Machado, proferiu uma frase que teve enorme repercussão, repetida milhões de vezes e muitas vezes com o seu verdadeiro sentido alterado e até deformado. Dizendo-se descendente de um dos companheiros de Martim Afonso de Souza na arribada histórica de 1532, e dizendo que sempre vivera em São Paulo, prendendo-o ao chão de Piratininga “todas as fibras do coração, todos os imperativos raciais”, pois desde a mesa em que trabalhava, a cátedra que ocupava na escola, a tribuna que usava nas assembléias, deitavam raízes nas camadas mais profundas do solo em que dormiam os mortos de que provinha, e confessando que tudo na sua pessoa traía o seu paulistanismo, a começar pela fala descansada de legítimo piracicabano, fala que esperava ouvi-la na agonia, como a ouvira no berço em que se embalara, empregou, como coroamento de suas imagens, esta frase lapidar: “Assim, nem por gracejo se lembraria alguém de por em dúvida o meu brasileirismo, porque paulista sou há quatrocentos anos...” Notai, prezados ouvintes, que Alcântara Machado considerava-se “paulista de quatrocentos anos” precisamente para que ninguém pusesse em dúvida o seu sentimento de brasilidade. E, no entanto, quantas e quantas vezes a expressão “paulista de quatrocentos anos” tem sido empregada como reflexo de um orgulho vazio e até comprometedor das legítimas tradições paulistas. Mais ainda: já a encontrei deformada na sua origem e no seu sentido em livro de grande escritor brasileiro, membro também da Academia Brasileira de Letras...
Segundo Movimento: Andante Expressivo

Em fins do século XVII, precisamente em 1696, passou pelo litoral de São Paulo, estagiando em Santos e São Vicente, o navio do Senhor de Gennes, em viagem de circunavegação. A bordo, vinha o Senhor De Froger, que, dois anos depois, publicaria em França um dos mais raros relatos de viagem de que se tem notícia. Nem Froger nem o comandante de seu navio vieram a São Paulo. Ficaram no litoral. Mas, o cronista informou que, no alto das grandes montanhas que dali de avistavam, ou seja, a escarpa da Serra do Mar, havia um burgo inteiramente isolado do resto do mundo, que mais parecia “um covil de bandidos de todas as nações”, vivendo sem lei nem rei, não permitindo que pessoa alguma lá chegasse. Onde teria o navegador francês aprendido isso, senão através dos informes desfavoráveis que sobre os paulistas se propagavam por outras regiões do Brasil, em grande parte divulgados pelos cronistas jesuítas, os quais, com boas razões, não podiam mesmo gostar dos paulistas?

Mas o depoimento do viajante francês vale como testemunho do isolamento em que São Paulo viveu quase todo o período colonial, resultante de condições geográficas bem conhecidas, criando, para a nossa terra, uma configuração sócio-econômica toda especial dentro da comunidade brasileira. Todos quantos têm estudado mais aprofundadamente a história paulista ressaltaram algumas características que marcaram a fisionomia de São Paulo nos tempos coloniais, contrastando-a com a de outras regiões do país: a pequena propriedade, a agricultura de subsistência, a policultura, as atividades vinculadas ao apresamento indígena, a expansão geográfica, a pobreza de sua sociedade, o pouco lustre de sua vida cultural, o nomadismo imposto pelas atividades a que se dedicou, o espírito de altivez, de arranjo e a tenacidade do grupo bandeirante naquelas aventuras que impressionaram os próprios homens do governo reinol. Tudo isso convida-nos ao estudo de uma história menos épica e mais humana, uma história na qual o povo apareça, como o fizeram, entre outros, Alcântara Machado, Otoniel Mota, Paulo Prado, Belmonte, Ernani Silva Bruno... Longe do fausto e da opulência da sociedade patriarcal nordestina, o que a documentação paulista nos revela é precisamente o oposto: o núcleo de extrema pobreza, sem igual no país, a tal ponto que seus filhos precisaram deixá-lo para tentar a vida em outras áreas do Brasil. Daí, o movimento quase ciclópico da expansão paulista por quase todo o país e nas suas várias modalidades – apresamento, pastoreio e mineração – as quais só podem ser entendidas, uma vez consideradas as condições físicas, sociais e econômicas que pautaram a vida do Planalto.

Mas, muito pouco São Paulo se beneficiou da expansão que seus filhos empreenderam em dilatadas regiões do País. Ao contrário: representou o bandeirismo verdadeira sangria na população planaltina, com a corrida para os centros, onde o ouro fora descoberto, e junto aos quais estabeleceram os paulistas seus arraiais, origem de numerosas cidades. Raríssima a cidade das regiões de mineração que não tenha resultado de uma fundação paulista. E não só nas Minas Gerais. Esta foi a primeira, o ponto de partida da grande expansão do século XVIII. Mal sucedidos nas Minas, os revezes sofridos pelos paulistas na chamada “Guerra dos Emboabas” - escrevi alhures – “incitam-nos a procurar novos rumos para a sua expansão. Dentro de alguns anos, novos veios auríferos serão revelados, em Mato Grosso e em Goiás, incorporando essas extensas regiões do Centro-Oeste brasileiro à área de sua influência e garantindo para Portugal a posse definitiva de tão dilatados territórios quando, em 1750, tiveram de ser delimitadas as fronteiras entre a “América Espanhola e a América Portuguesa”.

O povoamento e conseqüente desenvolvimento das regiões de mineração tornaram-nas, dentro em pouco, capitanias autônomas, destacadas de São Paulo, de maneira que, ao atingir os meados do século XVIII, a primitiva capitania paulista viu-se reduzida a menos de um terço de sua área original. O despovoamento – quantitativo e qualitativo – levou-a a tais extremos de decadência que redundou na sua própria extinção. Em 1748 desaparecia a Capitania de São Paulo, simplesmente anexada à do Rio de Janeiro. Dezessete anos perdurou esta situação, único hiato em toda a história administrativa de São Paulo. Em 1765, foi restaurada a capitania paulista, compreendendo apenas o atual Estado de São Paulo e mais o Paraná, que este, só em meados do século XIX, seria constituído em província autônoma, o último dos cortes sofridos por São Paulo em sua história quadrisecular. Tendo como base a cana de açúcar no interior da capitania, configurou-se nova fisionomia para o território paulista. A política povoadora do Morgado de Mateus, levando à ocupação do solo, mediante a concessão de sesmarias, até quase metade do atual território, quando, antes, a linha do povoamento detinha-se nas bordas da depressão periférica, encontrou na preciosa gramínia todo o seu apoio. Inúmeras cidades de hoje devem seu desenvolvimento (e às vezes sua própria existência) a essa atividade. Dentro do chamado “quadrilátero do açúcar”, as atividades subsidiárias se desenvolvem como ancilares da cultura canavieira e um esboço de vida urbana vai se delineando mais para o fim do século, quando diversos núcleos de povoamento, alegando o desenvolvimento da cultura da cana e da produção de seus engenhos, foram criados em freguesias e posteriormente em vilas, com a instalação do competente poder municipal.
Terceiro Movimento: Adágio com moto

Na segunda metade do século XVIII, o primeiro governador de São Paulo, após a restauração da capitania, escrevia ao Rei recomendando-lhe que utilizasse os paulistas se precisasse de grandes empreendimentos pelo interior das terras do seu Estado do Brasil, porque, pela experiência de mais de um século que tinham de viagens pelo sertão, conheciam-no melhor que ninguém e estariam prontos ao serviço de Sua Majestade, pois entre os seus atributos, além da coragem e da audácia, enumeravam-se: a honra, o brio, a dignidade, o senso de responsabilidade e a vontade de servir. Mas, nem seria preciso essa recomendação, pois certamente sabia o Rei e sabiam os da administração local ou metropolitana que, por mais de uma vez, já haviam sido os paulistas solicitados para grandes empresas em todo o país: chamados a conter os espanhóis nas suas investidas no Sul; chamados para ajudar os pernambucanos a expulsar os holandeses; chamados pelos alagoanos para ajudar na destruição de Palmares; chamados para auxiliar na demarcação das fronteiras delimitadas pelos tratados de Madrid e de Santo Ildefonso; chamados para conter e dominar a chamada “guerra dos bárbaros”, nos sertões do Nordeste. Que mais? O Morgado de Mateus apenas reiterava aquilo que um século já demonstrara ser real e patente: o sentido de integração, sem animosidades e sem rancores contra os habitantes de qualquer região do país, por mais isolados que dela se encontrassem. Nada havia que aproximasse social, cultural ou economicamente os paulistas dos povoadores de outras regiões do Brasil. Mas quando estas regiões apelam para São Paulo, a presença paulista não tarda e ela se identifica com os irmãos de todo o chamado “Estado do Brasil”, do qual muitas regiões haviam sido desbravadas, povoadas e até colonizadas por eles próprios.
Quarto Movimento: Allegro Maestoso

Pouco antes da Independência, visitou o Brasil o grande botânico francês Auguste de Saint-Hilaire. Autor de admiráveis relatos de viagens, demonstrou profundo conhecimento de nossa história e de nossa gente, a ponto de seus livros constituírem fontes preciosas para o estudo de nosso passado. Meditando sobre a história paulista, impressionou-se Saint-Hilaire com o movimento das bandeiras. E afirmou que, para ele, a grande epopéia do bandeirismo só teria explicação se aquela gente pertencesse a uma “raça de gigantes”. Eis o contexto de Saint-Hilaire onde se insere a expressão: “Quando se sabe, por experiência própria, quantas fadigas, privações, perigos ainda hoje aguardam o viandante que se aventura nessas longínquas regiões e se toma conhecimento do itinerário das intermináveis incursões dos paulistas antigos, sente-se uma espécie de assombro, tem-se a impressão de que esses homens pertenciam a uma raça de gigantes”.

E a que “incursões intermináveis” referia-se Saint-Hilaire? Àquelas que fizeram recuar o meridiano de Tordesilhas, aumentando de dois terços o território brasileiro e dando-nos, com pequenas modificações, o mapa do Brasil de hoje: sertanistas de Taubaté descobrem as Minas Gerais, o Anhanguera e os Pires de Campos descobrem as terras goianas; Domingos Jorge Velho perlustra o vale do São Francisco e leva as primeiras cabeças de gado, abrindo as mais antigas fazendas nos campos do Piauí; Matias Cardoso alcança o Ceará; Manuel Preto vence o Guaíra e o sul de Mato Grosso, dominando os espanhóis; Miguel Sutil, Pascoal Moreira Cabral e os Irmãos Leme descobrem o ouro do Cuiabá, e batem os sertões de Mato Grosso, alcançando as margens do Guaporé; Raposo Tavares conquista aos espanhóis o Paraná, o sul de Mato Grosso e o norte do Rio Grande do Sul, comanda o socorro paulista contra os holandeses no Nordeste, vence em armas os Andes do Peru e da Nova Granada, atinge o grande rio das Amazonas, encerrando o maior ciclo de devassamento das terras americanas; pela mesma época, Fernão Dias, depois de ter percorrido o Sul, empreende a famosa jornada esmeraldina,

“Foi em março, ao findar das chuvas, quase à entrada
do outono, quando a terra, em sede requeimada,
bebera longamente as águas da estação” ,

no dizer do maravilhoso poema de Bilac. E onde? “Para o norte inclinando a lombada brumosa”, onde “entre mateiros”, jazia a serra misteriosa, a azul Vupabuçu que lhe beijava as verdes fraldas, e onde

“Águas crespas, galgando abismos e barrancos
atulhados de prata”,

umedeciam-lhe os flancos em cujos socavões dormiam as esmeraldas. E após sete anos de jornada inútil, “combatendo índios, febres, paludes, feras, contendo os sertanejos rudes, dominando o furor da amotinada escolta”, volta com o seu tesouro falso, mas que ele crê verdadeiro e o aperta ao peito, a transbordar de pedras verdes.

“Mas num desvio de mata, uma tarde, ao sol posto,
Pára. Um frio livor se lhe espalha no rosto...
É a febre... é a morte...” .

Na terra que venceu – continua o poema de Bilac – há de cair vencido, e o herói, trôpego e envelhecido, roto e sem forças, cai junto do Guaicuí. É ainda o grande poeta parnasiano quem lhe idealiza a agonia:

“E essa face cavada e magra, que a tortura
Da fome essas privações maceraram, – fulgura,
Como se a asa ideal de um arcanjo a roçasse..”

No seu delírio, tudo lhe parecia verde, verde como uma grande esmeralda:

“Verdes, os astros no alto abrem-se em verdes chamas;
Verdes, na verde mata, embalançam-se as ramas,
E flores verdes no ar brandamente se movem;
Chispam verdes fusís riscando o céu sombrio;
Em esmeraldas flui, a água verde do rio,
E do céu, todo verde, as esmeraldas chovem...”

É uma ressurreição – continua o poeta – pois o corpo se levanta:

“E esse destroço humano, esse pouco de pó
Contra a destruição se aferra à vida, e luta,
E treme, e cresce, e brilha, e afia o ouvido, e escuta
A voz, que na solidão só ele escuta, - só:

Morre! Morrem-te às mãos as pedras desejadas,
Desfeitas como um sonho, e em lodo desmanchadas...
Que importa? Dorme em paz, que o teu labor é findo!
Nos campos, no pendor das montanhas fragosas,
As tuas povoações se estenderão fulgindo!

Quando, do acampamento o bando peregrino
Saía, antemanhã, ao sabor do destino,
Em busca, ao norte e ao sul, de jazida melhor,
Nesse louco vagar, nessa marcha perdida,
Tu foste como o sol, uma fonte de vida:
Cada passada tua era um caminho aberto!
Cada pouso mudado, uma nova conquista!
E enquanto ias, sonhando o teu sonho egoísta,
Teu pé, como o de um deus, fecundava o deserto!

Morre! Tu viverás nas estradas que abriste!
Teu nome rolará no largo choro triste
Da água do Guaicuí.. Morre, Conquistador!
Viverás quando, feito em seiva o sangue, aos ares
Subires e, nutrindo uma árvore, cantares
Numa ramada verde entre um ninho e uma flor!

Morre! Germinarão as sagradas sementes
Das gotas de suor, das lágrimas ardentes!
Hão de frutificar as fomes e as vigílias!
E um dia, povoada a terra em que te deitas,
Quando, aos beijos do sol, sobrarem as colheitas,
Quando, aos beijos do amor, crescerem as famílias,

Tu cantarás na voz dos sinos, nas charruas,
No esto da multidão, no tumultuar das ruas,
No clamor do trabalho e nos hinos da paz!
Violador de sertões, plantador de cidades,
Dentro do coração da pátria viverás!”

O espírito bandeirante continua e, ao longo dos séculos, define-se nos mais variados empreendimentos, pois bandeirante se torna sinônimo de empreendedor. Se anteontem apresava índios, descobria minas e abria fazendas de gado, se ontem cultivava a cana e depois o café e com ele construía estradas de ferro, hoje se reflete nas zonas pioneiras e nas novas atividades que criou para a sua economia. Porque, de fato, bandeirantes são igualmente os fazendeiros de café, os construtores de nossas ferrovias, os povoadores de nossas frentes pioneiras, os criadores de nossa indústria, os forjadores de nossa cultura literária, jurídica, científica, artística, que se inicia com os primeiros albores do romantismo na vetusta Academia de Direito do Largo de São Francisco, eclode na Semana de Arte Moderna e chega à grande revolução cultural de nossa época, já no século XXI.

Ao lado, pois, do movimento material de que se orgulha, também o desenvolvimento cultural com que se enobrece. Aliás, Alcântara Machado, no citado discurso da Academia Brasileira de Letras, já o lembrava ao ver em São Paulo a fusão harmoniosa das almas de Marta e de Maria: ávido de bens materiais, porque tem horror à dependência, mas igualmente ambicioso das riquezas imperecíveis, por isso mesmo tão ufano de suas fábricas e lavouras como de sua cultura e tradição. A tal ponto generoso e benéfico aos forasteiros, que se um deles chega cheio de sanhas e prevenções, logo se esquece de combatê-lo e se põe a
cortejá-lo. Tenaz como a verdade, paciente como a justiça, leal como a claridade. O nome varonil que recebeu dos jesuítas anuncia-lhe a predestinação radiosa. Nas primeiras palavras de Saulo, depois de siderado pela graça, preluz o temperamento daquele que, sem perda de um minuto, vai conquistar o mundo para o Cristianismo: Senhor, que devo fazer? A vocação histórica do paulista, remata Alcântara Machado, é como a do seu patrono: a ação. E que ação?
Último Movimento: Allegro ma non troppo

Em 1932, quando os soldados paulistas lutavam pela lei e pela Constituição, numa empresa infelizmente mal compreendida pelos outros Estados, que viram na revolução paulista um sentimento anti-brasileiro e até separatista (senti o problema porque, na ocasião, vivia em outro Estado), não tinha São Paulo ainda um brasão de armas – e era a única unidade da Federação que o não possuía – desejou naturalmente ter o seu escudo heráldico. E qual a legenda que escolheu para o seu brasão? Contrastando com o altivo “Non ducor, duce”, da Capital, escolheu a mais brasileira de todas as legendas. Vejam, prezados ouvintes: o Estado acusado de anti-brasileiro e separatista, escolhe para a legenda de seu brasão a bela frase “ Pro Brasilia fiant eximia”, isto é, “que se façam grandes coisas pelo Brasil”.

A legenda do brasão de São Paulo é bem uma síntese de sua história. Terra que, antes de pensar em si, pensou na grande Pátria: dilatando as fronteiras, aumentando assim de dois terços a superfície do país; desbravando e povoando extensas regiões de Minas Gerais, do Nordeste e do Centro-Oeste; na Independência, consolidando as instituições, com a figura de José Bonifácio, em termos de unidade nacional, contrariando tendências separatistas que em outros grupos se configuravam; na Regência, assegurando, na pessoa de Feijó, a ordem e a unidade do Império, tão ameaçadas; na República, escolhendo e defendendo o sistema federativo, por ser aquele que melhor se adaptaria ao espírito desenvolvimentista das províncias imperiais; com os três presidentes que deu à República, em seu início, consolidando o regime; com a sua Faculdade de Direito, desvinculando o país da tutela intelectual da velha Coimbra; com a cultura do café, dando ao Brasil seu esteio econômico; com suas frentes pioneiras, atraindo brasileiros de todos os Estados, que aqui se identificaram com os nossos ideais, aqui fizeram suas carreiras, inclusive alcançando, por eleição, cargos públicos e o próprio governo do Estado; com seus movimentos literários, sempre pensados em termos de Brasil e não em termos regionais, como ocorre em outras áreas onde a literatura foi marcada por intenso regionalismo, pois não temos até hoje um romance paulista bem caracterizado, como temos, por exemplo, o romance mineiro, nordestino ou gaúcho. Nessa atividade cultural, São Paulo preferiu anular-se em favor do todo nacional, pois o maior movimento literário de sua história – a Semana de Arte Moderna, de 1922 – é brasileira, nada tendo de paulista a não ser a naturalidade de seus promotores. Este espírito que faz de São Paulo um estado-síntese é a melhor afirmação de seu sentido de brasilidade, traduzido na legenda de seu brasão.

Mas, há nesta “Sinfonia Paulista” um complemento patético, que faz com que ela em vez de concluir-se com um “Allegro brilhante”, como em geral ocorre nas obras desse gênero, termine, tal como o fez Tchaikovsky na sua sexta sinfonia, com o “Adágio lamentoso”. O paulistanismo de quatrocentos anos, a que se referia Alcântara Machado; a coragem, a audácia, a honra, a dignidade, o brio, a altivez, o senso de responsabilidade, a vontade de servir tantas e tantas vezes demonstradas nos grandes momentos de sua história; a raça de gigantes lembrada por Saint-Hilaire; a fusão das almas de Marta e de Maria (ainda na imagem de Alcântara Machado), tudo isso, galardões imperecíveis de um grupo, de um povo, vai se diluindo num passado nevoento, no qual custamos a distinguir as imagens que nos foram tão caras, nem sequer vislumbrar nada do que foi, nem do que deveria ter sido sempre.

O estudo e o cultivo de nossas e do nosso regionalismo, tomada aqui a palavra no bom sentido, de que os outros Estados nos dão magníficos exemplos, deverão constituir a preocupação precípua de todos nós, para que o espírito paulista, sem bairrismo (como pode ser bairrista uma terra cosmopolita, na qual raramente se encontram sobrenomes que não sejam estrangeiros?), sem animosidades, mas com aquela altivez que os homens da terra sempre souberam ter, quando lembravam, a exemplo do lendário Sepé, que “essa terra tem dono” e, como tal, não pode e nem deve ser desfigurada, simplesmente porque acolheu brasileiros de todos os Estados e estrangeiros de todos os países.

Evitamos a desfiguração, a descaracterização de nossa terra, não só a material e cultural, mas especialmente a moral. E eu me permito uma paródia: certa vez um famoso líder religioso afirmou existirem no mundo, atualmente, mais de novecentos milhões de cristãos, o que provocou de um jornalista irônico esta terrível pergunta: “Onde estão eles?” Hoje, quando as estatísticas nos mostram que temos mais de trinta milhões de paulistas, ocorre-nos também a vontade de perguntar: “onde estão eles?” Serão paulistas mesmo ou simplesmente nascidos em território paulista? Para mim, há muita diferença, especialmente se considerarmos a quantidade imensa, que felizmente existe, de brasileiros de outros Estados e de estrangeiros de outros países, mas que se têm demonstrado mais paulistas do que se aqui tivessem nascido.

Seria o caso de esperarmos por alguma “pancada heróica” capaz de despertar as fibras de nosso paulistanismo, para que se revigorem aquelas forças que tanto nos ilustraram no passado, mas que se diluíram com o passar do tempo, com a inércia, o desinteresse, o comodismo, o aviltamento de nosso passado e a descrença no nosso futuro? Que saibamos vencer tais anomalias, tais vícios de formação, tais descaracterizações para que São Paulo tome novamente consciência de seu papel na história e na vida de nosso país. Enfim, para que os paulistas voltem a ser aquela “raça de gigantes”, a que se referia Saint-Hilaire.

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