sexta-feira, 31 de maio de 2013

Dom, o nome perdido da partilha.

A economia precisa da moeda como meio de mediação entre os participantes de uma troca. Diferente é a dinâmica do dom, em que a reciprocidade abre espaço para possível e inéditas relações sociais.

A opinião é do filósofo francês Jean-Luc Marion, immortel da Academia Francesa. O artigo foi publicado no jornal Il Manifesto, 30-01-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

A economia que, literalmente, significa "a lei que reina em casa", é interpretada como troca econômica. Mas esta última deve ser considerada como um aspecto da economia que pode ser discutido, e não como sinônimo de economia. O que, dentro da economia, pode se contrapôr à troca? Não a abolição do sistema de mercado, não a oposição do capitalismo ao socialismo, mas sim o dom. Quando se opõe o dom à troca, aparentemente se vai contra a definição mais célebre de troca, formulada por Marcel Mauss nos anos 1920, e na qual se baseia a maioria dos estudos sobre o dom.

Segundo Mauss, o dom é um caso particular de troca, isto é, uma troca gratuita. Se olharmos para a história de certos grupos étnicos que permaneceram alheios à revolução econômica, encontramos um sistema de troca em que uma tribo que encontra outra faz-lhe uma doação em sinal de benevolência, forçando, assim, a outra tribo, para manter a paz, a uma troca recíproca, que é igual à anterior +1.

Em nome de Mauss

Graças à troca gratuita, mas que inclui uma lógica de reciprocidade, a paz é mantida. É o sistema do dom de potlatch. O dom, de fato, é uma troca, sem a mediação da moeda. Poder-se-á dizer que há trocas gratuitas, o dom, e trocas não gratuitas, o comércio, mediado pelo valor de troca e pela moeda. Eu gostaria de mostrar que não é assim: a gratuidade e o dom não são um caso particular da troca; a lógica do dom é irredutível à lógica da troca e do comércio.

Para estabelecer esse ponto, é preciso entender que há também uma dificuldade do dom, destacada por Jacques Derrida, que, para reforçar a redução do dom à gratuidade por parte de Marcel Mauss, dizia que o dom é sempre uma ilusão, e que a realidade do dom é sempre implicitamente a lógica da troca. Se eu faço uma doação a alguém, ele me deve algo, mesmo que eu não lhe peça nada. Em uma troca econômica, é muito claro que eu devo alguma coisa. No dom, aparentemente, eu não tenho mais nada a fazer.

Na verdade, aquele a quem a doação foi feita, mesmo que lhe tenha sido feito por nada, deve algo, ao menos o reconhecimento do qual tentará se livrar fazendo uma contra-doação um dia. Se ele não der nada em troca, será considerado por todos como um ingrato, perderá a reputação de homem generoso, porque foi-lhe feito um presente que ele não vai restituir. Ele parecerá um homem consumido pela ingratidão, pela avareza, se sentirá culpado.

Aquele que recebe, portanto, deverá pagar, em termos reais ou simbólicos. Quem entra no déficit simbólico, pagará com juros. O dom é sempre suspeito, não só de hipocrisia, mas continua implicitamente em uma troca ainda mais radical ser for feita de modo subterrâneo e talvez mórbido. O dom é sempre apenas uma troca silenciosa – e, de fato, nem tão silenciosa. Essa é uma forma para conservar a posição de Mauss.

É possível ter um dom, embora reduzindo o seu beneficiário, o donatário. É uma experiência que fazemos frequentemente – dar não sabendo a quem damos – por exemplo às ONGs: é precisamente porque não sabemos a quem damos que podemos dar de modo eficaz. O desaparecimento do donatário não impede o dom. Tentemos ser cínicos: às vezes, preferimos não ter que nos ocupar com o fim da distribuição, que deixamos a profissionais.

O anonimato do donatário pode ser uma solução cômoda. Mas há dons mais dignos de admiração que se baseiam no desaparecimento do donatário. Quando damos a alguém que não nos pediu nada ou de quem sabemos que conservará a sua ingratidão e a sua incapacidade de nos agradecer, quando sabemos que nos deixaremos criticar por ter feito uma doação e a fazemos mesmo assim: nessas situações, o nosso presente se torna ainda mais claro.

Mas também se pode fazer uma doação sem que ninguém a dê e sem que apareça como um dom. O exemplo mais evidente da doação que ninguém dá é aquela feita por quem morreu. O morto dá no momento em que ninguém dá: é a questão da herança. Torna-se o protótipo do dom anônimo. Como no romance em que o Capitão Nemo faz aos náufragos da ilha misterioso a doação da qual eles têm uma necessidade vital; ou nos romances populares, em que um misterioso doador se esconde e vela sobre a salvação da pobre órfã. O melhor doador é o doador ausente. No caso da herança, é necessário que o doador esteja ausente para que ela ocorra; aqui, a ausência é a própria condição do dom; e não haverá troca, porque não haverá um retorno à vida do doador.

A herança é um dom perfeitamente injusto: pode ocorrer com alguém que não precisa dela, ou com alguém que o falecido detestava, ou vice-versa. Ela não está ligada aos juros, não tem interesse em todos os sentidos do termo. Vem à mente a imagem bíblica de Deus, que dispensa os seus benefícios tanto sobre o mau quanto sobre o bom. Em outras palavras, o dom não está ligado ao interesse, e uma das formas do desinteresse é que não há doador. Esse é o motivo pelo qual os antigos diziam que os deuses não sentem inveja, fórmula retomada pelos primeiros cristãos: Deus dá sem inveja, sem fazer cálculos, em perda. De fato, o doador deve desaparecer, no sentido de que ele dá sempre em perda, e quanto mais ele dá em perda, mais o seu dom é dom.

Chegamos à terceira redução. Santo Agostinho, para explicá-la, faz a hipótese de uma mulher que recebe do seu futuro esposo um anel e diz: "Obrigado, vou guardar a joia e não nos casaremos". Pensando assim, ela se comporta como se o jovem a tivesse dado o anel e nada mais; mas não é assim que o jovem pensava: ele pensava que, colocando-lhe o anel no dedo, ele teria se dado a ele e, reciprocamente, ela a ele. Embora a joia tenha um valor, o que constitui o seu valor profundo é o que procede com a pessoa amado.

Na maior parte das doações que fazemos, o que doamos efetivamente nunca é o que constitui o dom, mas sim o que "procede com". Quando você quer agradar alguém, você lhe dá algo, mas o presente é somente o porta-voz, o acessório do carinho que, assim, você o testemunha. E quanto mais o que se dá for importante, mais o dom deve ser irreal, irrealizado e simbólico.

Pensemos em quando tomamos posse de um imóvel ou de uma empresa que se adquiriu. Para fazer isso, vai-se a um cartório, e assinam-se documentos. Mas a tomada de posse não tem nenhuma relação com a efetividade do que se está por possuir. Quando é eleito, o presidente dos Estados Unidos recebe os códigos nucleares, mas não algo como "o poder", que permanece invisível. O que se dá nunca é proporcional ao que acompanha o dom. Quanto mais o dom é considerável, mais se torna imaterial.

Quando há pessoas que morrem de fome, e nós lhe damos de comer, de beber, um abrigo, certamente doamos algo, mas é a vida que doamos, além do pão, da água e das cobertas. Não doamos medicamentos, mas sim a possibilidade de sobreviver a uma doença; não produtos agrícolas, mas sim a possibilidade de comer; em suma, a vida. Doa-se a vida doando outra coisa junto com ela, e essa outra coisa não teria nenhum valor se não tivéssemos necessidade dela para permanecer com vida.

Quando você doa o seu tempo, a sua vida, o seu amor, em sentido estrito, não doa nada. Realiza um gesto ou outro, mas os gestos não são objetos. Você doa o que não é uma coisa, porque a diferença entre a vida e a morte não é real, o morto é tão real quanto o vivo. O tempo que você doa não é real; ao invés, é a única coisa que o dinheiro não pode comprar. Com o tempo, faz-se dinheiro, mas com o dinheiro ninguém nunca comprou tempo. Portanto, quando se perde o próprio tempo para fazer dinheiro, de fato, não se tem a certeza de ganhar algo em troca. Quanto mais o que você doa é essencial, menos é real. Dizer que quanto mais o dom é fundamental, menos é real, significa dizer a verdade. São apenas os dons de pouquíssimos valor que são reais, como oferecer um cigarro a alguém na rua.

O contrato erótico

A questão do dom é realmente paradoxal, já que não precisa dos termos da troca para parecer como um dom; ao contrário, parece como tal apenas se se abre mão de termos da troca. O que se produz no dom? Produz-se uma lógica do avanço – em sentido econômico – que eu chamei em outro lugar de lógica da experiência erótica.

Na experiência erótica, de fato, também se pode pensar segundo a lógica da economia e da troca, seguindo o princípio: "Eu amo você somente se você começou a me amar. Eu vou amar você somente em troca do primeiro investimento que você tiver feito para me amar. E não espere ser o primeiro a jogar as minhas cartas". É uma interpretação econômica do amor. Mas há uma outra: a interpretação erótica do amor. Nesse caso, trata-se de dar sem esperar a troca em resposta, até mesmo sem esperá-la, nem desejá-la. É o que faz a grandeza de Deus, quando cria coisas que não estão em condições de amá-lo, porque ainda não existem; ou o fascínio de Don Juan que diz a uma mulher: "Você é linda, eu te amo", e que, de repente, faz com que ela se torne linda.

Quem é o primeiro a amar assume o risco da ausência de reciprocidade, essa é a lógica do dom. Ele cria as condições eventuais da resposta, mas não é orientado pela possibilidade da troca e da resposta. Ele tem um poder criador, como não acontece com a troca. A troca visa à justiça, à reciprocidade e se concilia com o crescimento ou com o interesse do reembolso da dívida. A troca segue a igualdade em sentido matemático e político. O que é próprio do dom, ao invés, é estar sempre no princípio da antecipação sem resposta, portanto, na lógica do crescimento.

http://www.ihu.unisinos.br/noticias/517404-dom-o-nome-perdido-da-partilha-artigo-de-jean-luc-marion