Trecho inédito da biografia de Mário de Andrade, "Uma Vida Moderna" (título provisório), do capítulo "Inverno Sangrento"
*
"No início de 1932, Macunaíma ainda trazia para Mário mais
aborrecimentos que consagração, em decorrência das incompreensões e
acusações de plágio. Contudo, outros acontecimentos, de caráter
político, começaram a se sobrepor em suas preocupações, desde o
monumental comício realizado no dia 25 de janeiro na Praça da Sé.
Debaixo de incessante chuva, a comemoração do 378º aniversário de São
Paulo se transformara em um protesto maciço contra o governo central.
Mário avaliou que a "alma paulista" estava vivendo um de seus momentos
mais trágicos, pois ainda não estava claro o que os paulistas queriam
com aquela escalada de conflitos que remontavam aos primeiros meses após
a Revolução de 1930.
Ele repudiava o intervencionismo federal e as injustiças cometidas por
um governo que se intitulava Provisório havia quase dois anos, com o
Legislativo fechado e a Constituição abolida.
Mas a política não o atraía, sequer intelectualmente. Era como uma
visita desagradável para a qual ele raramente abria a porta. Para alguém
sensível como ele, era difícil suportar o jogo político, com as tramas e
tramoias, manhas e artimanhas, dissimulações e subterfúgios. Como a
maioria dos artistas e escritores dedicados ao seu ofício, ele estava
mais interessado nas paixões universais, com suas contradições, erros e
dúvidas. As sucessivas crises no país desde 1922 só o comoviam como
espetáculo humano.
Embora continuasse filiado ao Partido Democrático, não tinha o
entusiasmo de seu irmão Carlos, extrovertido e eloqüente, já se
candidatara a vereador e era um dos mais atuantes membros do mesmo
partido. Os dois até discutiam muito de vez em quando, porque Carlos
considerava mais importante a revolução política do que a revolução
estética.
Além disso, nos primeiros meses de 1932 Mário ficou doente, e depois de
restabelecido voltou-se para os inúmeros trabalhos que ocupavam seu
cotidiano: escrever contos e ensaios literários para a Revista Nova, um e
outro poema nada político, dar as aulas no Conservatório, preparar a
segunda edição do Compêndio de história da música e uma coletânea de
artigos jornalísticos sobre música folclórica e erudita brasileira para
um novo livro. Como se não bastasse, seu coração convalescia de um
frustrado caso de amor - o casamento era uma cogitação, só faltava
encontrar uma mulher ideal disponível.
Nos momentos de divagação, ele sonhava voltar ao Nordeste, mas para
morar, à beira de alguma praia, de preferência em Natal. Outro plano era
fazer mais uma viagem às cidades históricas de Minas Gerais, rever as
obras do Aleijadinho, abraçar os amigos em Belo Horizonte, como escreveu
a um deles, o poeta Carlos Drummond de Andrade.
Mas depois do comício na Praça da Sé, ficou impossível a qualquer
paulistano que lesse jornal permanecer indiferente ao enredo político.
Em meados de fevereiro o Partido Democrático e o Partido Republicano
Paulista se aliaram formando uma Frente Única para reivindicar com mais
força a autonomia política do estado de São Paulo e a convocação urgente
de uma Assembleia Constituinte, que o governo prometera para o ano
seguinte.
Mais por curiosidade de escritor, ele não deixava de ir às manifestações
populares. Como a realizada na noite de 23 de maio, segunda-feira. A
multidão se concentrou na Praça do Patriarca e após alguns discursos
seguiu para o Palácio dos Campos Elíseos, sede do governo interventor, e
percorreu outras ruas e praças do Centro. Na Praça João Pessoa (atual
Pátio do Colégio), Mário assistiu com tristeza e raiva alguns homens
mais exaltados arrancarem a placa de bronze com o nome do político
paraibano assassinado menos de dois anos antes.
A ação foi saudada com vários tiros disparados para o alto. Mário e
várias outros correram assustados. Ele foi para casa com o pensamento
dividido, considerando que "todas as multidões são heróicas e covardes,
civilizadas e selvagens", como escreveu na crônica "Heróis de um dia",
publicada dias depois no Diário Nacional. Naquela noite, os
manifestantes entraram em conflito com partidários do governo federal e
quatro jovens morreram baleados - Miragaia, Martins, Drausio e Camargo
-, cujas iniciais foram usadas para nomear a organização MMDC, que
passou a arregimentar civis clandestinamente.
Nas ruas e praças, esquinas e bares, o apelo à adesão era irresistível.
Nas conversas com amigos, Mário só via empolgação com o movimento. Ainda
em maio, Guilherme de Almeida e seu irmão Tácito, por exemplo,
lideraram com outros intelectuais, jornalistas, políticos, profissionais
liberais e escritores a criação da Liga da Defesa Paulista, para
mobilizar a participação civil. Alcântara Machado, Menotti de Picchia,
Couto de Barros, Paulo Duarte, René Thiollier, todos estavam se
envolvendo.
Os mais entusiasmados embarcaram na canoa furada do separatismo, como
Rubens Borba de Moraes, velho amigo de Mário desde antes do Modernismo, e
Monteiro Lobato, que propunha hegemonia paulista ou separação. Mas eram
uma minoria, embora tenha até prejudicado os constitucionalistas, pois a
ideia separatista foi usada pelo governo como demonstração de que os
paulistas tinham preconceito contra o resto do Brasil.
Mário não aderiu e nem levava a sério os separatistas. Para ele, tinham "peito ferido, não cabeça organizada."
Em julho, o inverno do descontentamento paulistano chegou ao paroxismo.
Na manhã do dia 10, um domingo, Mário se levantou alarmado com as
notícias no rádio: na noite anterior uma guarnição do Exército e
soldados da Força Pública juntamente com milícias de civis armados
haviam ocupado pontos estratégicos da cidade, as aulas escolares estavam
canceladas até segunda ordem, o interventor federal Pedro de Toledo
havia rompido com o governo central e se aliado aos rebeldes, vários
postos de alistamento de voluntários já estavam criados em diferentes
pontos, as comunicações telefônicas e telegráficas com o Rio de Janeiro
estavam interrompidas.
Aconteceu o que Mário temia: o embate político se transformara em
guerra. Perplexo, saiu para conversar com amigos sobre os
acontecimentos. Adorava a sua cidade e dela se orgulhava, mas sem
bairrismo, seu espírito cosmopolita rejeitava até mesmo a idealização
patriótica. Com pesar, ouviu seus amigos e seu irmão Carlos que apoiavam
entusiásticos a sublevação e estavam dispostos a partir para as
trincheiras. Aparentemente Minas Gerais, Mato Grosso e os estados do Sul
estavam aderindo. O otimismo era total.
Mário voltou triste para casa. Abominava a guerra, o "pragmatismo
irracional" de todas as guerras. E tinha consciência de que era uma
guerra insuflada pelas elites paulistanas, frustradas com a perda de
poder após a Revolução de 30.
Nos dias seguintes a cidade foi tomada por um arrebatamento cívico.
Manifestos, slogans, bandeiras, faixas, panfletos, cartazes, comícios -
tudo por São Paulo, todos contra os "ditatoriais".
Aquela unanimidade raivosa deixou Mário inicialmente exasperado,
desorientado, sofrendo com um conflito de consciência. Não podia se
omitir, seria considerado derrotista ou, pior, covarde. Mas por
considerar a guerra um crime, não pretendia se alistar, e tampouco
vincular seu nome a esse crime. O dilema durou só alguns dias. Aos
poucos ele se converteu num patriota.
Foi conversar com Paulo Prado e Alcântara Machado sobre a situação da
Revista Nova. Não havia mais condições financeiras nem políticas para
elucubrações puramente culturais. Decidiram interromper a publicação.
Em casa ele incentivou a mãe, a tia e a irmã a colaborarem no apoio
logístico, doando roupas, jóias, anéis outros bens; ele próprio
contribuiu doando roupas, livros e revistas para hospitais e um dinheiro
que tinha guardado para viagens. No Conservatório ele exortou as alunas
a participarem de acordo com suas aptidões, promoveu uma reunião da
congregação na ausência do diretor, propondo a entrega de um donativo em
dinheiro, e o prédio da escola foi cedido à Cruz Vermelha.
Foi à sede da Liga de Defesa Paulista, na Rua Barão de Itapetininga, 6, e
se colocou à disposição para executar quaisquer tarefas que lhe fossem
ordenadas. Foi enviado para ajudar em postos de alistamento, fazer
censura no correio militar, escrever folhetos de propaganda. De manhã
fazia seus trabalhos pessoais em casa e à tarde ia para a Liga, às vezes
permanecendo nas tarefas até às dez horas da noite.
Em suas crônicas aos domingos no Diário Nacional não comentava a guerra
civil explicitamente. Sua única referência a isso foi numa série
iniciada no dia 17 de julho com o título geral "Folclore da
Constituição". Os textos incluíam comentários sobre cartas de soldados,
historinhas e anedotas, sempre relacionadas à chamada Revolução
Constitucionalista, mas com um linguajar pitoresco e bem-humorado.
A partir de agosto, passou a trabalhar também no Jornal das Trincheiras,
na verdade um boletim, lançado no dia 14 daquele mês. Era o órgão
oficial da rebelião, criado pela Liga de Defesa Paulista, por
incumbência do Comando Supremo do Exército Constitucionalista. O
redator-chefe era Guilherme de Almeida, que havia partido com o primeiro
batalhão de voluntários, mas fora chamado de volta para assumir a
direção do periódico.
Bissemanal, com circulação aos domingos e quintas-feiras, era
distribuído principalmente nas frentes de combate. Inicialmente a
redação funcionou na sede da Liga. A partir do número 4 passou a ocupar
três salas no 4º andar do enorme Edifício Pirapitingui (já demolido), um
prédio art déco na Rua João Brícola, 10, esquina com Rua Boa Vista,
Centro de São Paulo.
A linguagem do periódico era triunfalista, como sempre acontece nos
meios de comunicação em épocas de guerra, e as matérias incluíam
depoimentos de soldados, comunicados do Serviço de Publicidade da Liga
sobre as heróicas batalhas nas principais frentes, trechos de noticiário
dos jornais, mensagens de incentivo aos voluntários, charges e tiras de
humor, e de vez em quando artigos ufanistas com pretensões literárias.
Nenhuma matéria era assinada, com raras exceções, como dois textos
subscritos com as iniciais "V.Cy.", de Vivaldo Coaracy, alguns do
tenente Juó Bananére, e um de Guilherme de Almeida, que no número 8
escreveu na capa um texto curto sobre o 7 de setembro, enfatizando que o
grito da Independência foi dado em solo paulista.
O boletim durou treze edições, entre 14 de agosto e 25 de setembro. Uma
das seções mais lidas era a coluna "Notícias Militares", com notícias
sobre batalhas nas principais frentes (Vale do Paraíba, fronteira de
Minas e sul do estado), informações sobre adesões, promoções de soldados
e alistamento de voluntários.
Embora sem assinatura, pelo menos um texto dessa coluna pode ser
atribuído a Mário, por um motivo simples: a grafia. Ele foi o único
escritor brasileiro a escrever "milhor", em vez de "melhor". E adotou
essa grafia num texto publicado no nº 2 do boletim. Como em toda
redação, principalmente de uma publicação que não contava só com
jornalistas profissionais, os textos passavam por um redator que fazia o
copidesque, enxugando os textos e os adaptando para a linguagem
jornalística.
"NOTICIAS MILITARES
Operações Militares:
"Dia 12 de Agosto - As tropas constitucionalistas mantiveram-se em
defensiva na maioria dos setores. Assinala-se, durante o dia, forte
pressão do inimigo no setor de Cunha. O ataque é repelido com perdas
elevadas para os ditatoriais. Na frente de Queluz, as tropas
constitucionalistas iniciam uma ofensiva com auxílio da aviação. As
perspectivas são esplêndidas. Milhora imediatamente a situação
estratégica das nossas forças e são feitos vários prisioneiros, entre os
quais um primeiro tenente do exército.
Dia 13 de Agosto - A ofensiva das tropas constitucionalistas, iniciada
no dia anterior no setor de Queluz, generaliza-se por larga extensão da
frente norte. A nossa aviação toma parte importante nessa ofensiva,
tanto em Queluz como em Areias e Cunha. Os nossos aviões voltam sem dano
às suas bases. Por seu turno, durante o dia, alguns aviões inimigos
pretendem danificar as instalações elétricas da Light, em Cachoeira, mas
não conseguem o intento.
Dia 14 de Agosto - Desencadeada à tardinha, a ofensiva das tropas
constitucionalistas no setor de Pinheiros, próximo de Queluz. a luta
prossegue noite a dentro. A nossa ala esquerda, onde está o Batalhão
Paes Leme, sob o comando do major Pietscher, numa formidável carga de
baioneta, toma uma trincheira inimiga. Também no setor do Tunel, as
tropas constitucionalistas desencadeiam um assalto violentíssimo contra
os ditatoriais, aprisionando muitos destes. E enquanto as nossas tropas
se cobrem de vitorias, um avião inimigo metralha vivamente um trem em
que viajam o cel. Euclides de Figueiredo e seu Estado Maior. Aliás sem o
menor dano para nós. Dia glorioso para os constitucionalistas em toda a
frente norte. Mais de 100 prisioneiros.
Dia 15 de Agosto - A noite para o dia 15 serviu para consolidação das
posições ganhas pelos constitucionalistas no dia anterior. Durante o dia
15 voltamos a atacar em alguns setores, com novas perdas graves para o
inimigo. Só prisioneiros, em 24 horas, as tropas constitucionalistas
fizeram perto de 140. A atividade militar está desencadeada mais ou
menos por todos os setores. Na frente sul a nossa pressão sobre o
inimigo persevera intensa, sem que ocorra porém sucesso algum de caráter
decisivo.
Dia 16 de Agosto - O inimigo inicia durante a noite de 15, algumas
ofensivas. Foram de especial violência as registradas no setor de Cunha,
na frente norte, e no setor de Buri, na frente sul. São ataques
violentíssimos estes, antecipados por enorme preparo de artilharia.
Fizeram perto de mil tiros. Mas, essa ofensiva não conseguiu destruir as
nossas posições. O batalhão 'Borba Gato' provou admiravelmente a sua
eficiência nesse combate. Na região de Cunha os ditatoriais iniciaram
também veemente ofensiva, bem como nos setores de Tunel e de Cruzeiro.
Nada conseguiram. Mais um dia excelente para as tropas
constitucionalistas."
Ao mesmo tempo Mário participava de outros eventos relacionados à
guerra. No final da tarde de 21 de setembro de 1932, ele foi ao Clube
Comercial, na Rua Líbero Badaró para uma reunião com mais de 60
escritores, artistas e intelectuais - entre eles Guiomar Novais,
Guilherme de Almeida, Couto de Barros, Francisco Mignone, Souza Lima e
Camargo Guarnieri.
A finalidade da reunião era discutir um documento de protesto contra o
bombardeio de Campinas por aviões do governo, sem visar a alvos
militares. Diversas casas, hoteis e prédios tinham sido atingidos,
causando mortes de civis. A cidade, a 100 quilômetros da capital,
possuía importantes centros culturais e de pesquisa científica, como o
Instituto Agronômico, Lyceu de Artes e Ofícios, Sociedade de Cultura
Artística, Centro de Ciências, Letras e Artes.
A exemplo de outras entidades paulistanas que já tinham protestado, os
intelectuais lançaram um manifesto assinado por todos os presentes.
Mas dez dias depois, a guerra acabou, mediante assinatura de um
armistício entre o comandante da Força Pública de São Paulo e o general
Góes Monteiro, em nome das tropas do governo.
Para Mário, a derrota trouxe sofrimentos de teor moral e financeiro. No
dia 3 de outubro, o Diário Nacional foi obrigado a fechar e ele perdeu
uma importante fonte de renda, enquanto os outros jornais paulistanos
mais expressivos estavam tendo que remanejar os cargos na redação, sem
poder aceitá-lo de imediato. Seu irmão e amigos paulistas que tinham
participado do conflito estavam presos; os amigos mineiros eram agora
politicamente "inimigos", pois Minas Gerais tinha apoiado o governo
federal na guerra. Ele estava sozinho. Era o fim de um inverno infernal e
o início de uma temporada no purgatório."
http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/1116148-leia-trecho-inedito-da-biografia-de-mario-de-andrade.shtml