quarta-feira, 1 de agosto de 2012

A disputa pelos restos da Líbia


A Líbia dá sinais de estar se convertendo na próxima Somália, com grande parte do país já controlada por milícias armadas de clãs ou tribos.

Como se viu ocorrer com os somalis, a Líbia está em processo de fragmentação. Ao leste, a regiçao da Cirenaica, rica em petróleo, já anunciou sua proclamação de independência de fato.

Trípoli, a capital da Líbia, parece estar rumando para converter-se no que Mogadíscio, capital da Somália, tornou-se há 20 anos, com incontáveis milícias bem armadas nas áreas periféricas urbanas, que se instalam nas cidades e envolvem-se em infindáveis confrontos por território, disputando os restos de poder.

O único governo nacional real e modernizante que a Líbia jamais conheceu foi o governo de Muamar Kadafi, assim como o único governo modernizante que houve na Somália foi o de Siad Barre.

Os dois países foram criados pelo colonialismo italiano e passaram a integrar o Império Colonial Italiano na África. Nenhum dos dois jamais teve qualquer unidade histórica. Antes dessa fase, a Líbia se resumia a algumas cidades-estado e as tribos, a maioria das quais absolutamente nômades.

Antes do colonialismo italiano, jamais existiu um rei na Somália nem qualquer terra governada por clã ou conselho tribal.

Em nenhum jamais se constituiu nação, muito pelo contrário. Mesmo assim, durante algum tempo, os dois países viveram bem – por difícil que seja acreditar no caso da Somália.

Em 2011, a Líbia foi destruída por bombardeios aéreos sem precedentes, com mais de 10 mil ataques que despejaram sobre os líbios cerca de 40 mil peças explosivas de alto poder de destruição, durante cerca de oito meses. Quarenta mil bombas mataram cada uma, em média, duas pessoas. Só até aí já foram 80 mil líbios mortos pela OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte) em 2011, em uma população muito pequena, de cerca de seis milhões.

A destruição que a OTAN provocou na Líbia equivale a cerca de 100 mil ataques aéreos sobre o Reino Unido, com cerca de 400 mil bombas que matariam 800 mil britânicos em oito meses. Assim, afinal, se pode ter uma ideia realista da escala da desgraça que a OTAN levou à Líbia.

A Líbia hoje exporta mais de 90% de sua produção de petróleo e gás, quase 2 milhões de barris ao /dia, e um dos melhores tipos de petróleo que existem no planeta. Para onde vão os quase 200 milhões de dólares diários, seis bilhões mensais ou mais de 70 bilhões ao final de 2012, permanece um mistério quase absoluto.

O chefão da Al Qaeda e dos rebeldes líbios que fez o serviço mais sujo depois do bombardeio pela OTAN é o infame Abdelhakim Belhadj, ex-comandante no Iraque e líder da organização no Norte da África. Hoje, comanda a maior, mais eficiente e bem organizada milícia em operação na capital Trípoli. Sob seu comando operam milícias tribais de diferentes tamanhos e competências, entre as quais as milícias de Zintan, que mantêm preso Saif al Islam Kadafi.

O CNT (Conselho Nacional de Transição), chefiado, pelo menos em parte, por vários dos ex-comandantes de Kadafi, mantém uma difícil relação de paz com essas milícias.

As eleições comandadas por um "governo" implantado pela OTAN não passam de artifício para encobrir a ilegitimidade do atual regime, cujo único projeto de governo é receber os 70 bilhões anuais da renda do petróleo e os dividendos dos 100 bilhões de dólares do fundo soberano líbio depositado em bancos ocidentais.

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No campo oposto contra Belhadj e próprio CNT está o que se conhece como "Resistência Verde", que a “imprensa-empresa” ocidental chama de "militantes pró-Kadafi". Eles fazem parte da maior tribo da Líbia, os Warfalla, da mãe de Saif al Islam. O que se diz é que, aos poucos, eles estão começando a organizar forças de autodefesa para proteger suas comunidades contra ataques de “senhores-da-guerra” e suas respectivas milícias.

Belhadj esteve preso na Líbia, onde foi torturado por gente que, hoje, circula entre os líderes do Conselho Nacional de Transição. Foi entregue como prisioneiro pela CIA-EUA, num dos programas pelos quais prisioneiros da agência de inteligência norte-americana eram entregues a outros países para serem interrogados. A tortura de Belhadj só acabou quando Saif al Islam Kadafi convenceu seu pai a perdoá-lo e a seus chefes, em troca de uma promessa de coexistência pacífica que Belhadj rapidamente traiu.

O que se sabe é que Belhadj tem manifestado alguma espécie de benevolência em relação a Saif, o que pode explicar por que o filho de Kadafi continua vivo. Entregue à proteção de aliados de Belahdj em Zintam, ele está mantido a salvo, longe do alcance da Corte Internacional de Justiça e do Conselho Nacional de Transição.

É altamente provável que Belhadj esteja operando para assumir o controle sobre os bilhões do petróleo, mantendo-os fora do alcance do governo imposto pela OTAN, ao mesmo tempo em que trabalha para vingar-se de seus ex-torturadores, hoje no Conselho Nacional de Transição confinados em Benghazi (quando não estão fora do país).

Para conseguir o que almeja, Belhaj pode bem se interessar por aceitar um acordo de cessar-fogo com a Resistência Verde, que também quer o fim do governo fantoche do CNT pela OTAN. Descartado o Conselho, um acordo de paz entre Belhadj e Saif al Islam poderia ser arrumado para tentar pôr fim ao fogo e ao sangue que ainda pinga dos sabres na Líbia.

Mas isso também pode não passar de um desejo delirante que depende de a OTAN não intervir militarmente para defender o "seu" Conselho Nacional de Transição – ameaça presente que, por sua vez, pode explicar a paciência de que Belhaj e seus aliados têm dado várias provas.

Quem sabe? A verdade muitas vezes é mais estranha que qualquer ficção. E o que hoje parece que o desejo delirante pode converter-se em realidade amanhã ou depois. Mas, no que tem a ver com a Líbia estar caminhando na direção de converter-se numa nova Somália, sim, a história indica precisamente esse rumo.

Thomas C. Mountain é o jornalista independente e trabalha na Eritreia desde 2006. Suas entrevistas podem ser assistidas no jornal Russia Today TV e PressTV (Irã). Artigo publicado originalmente na revista CouterPunch e republicado no Diário Liberdade.